LEPH - Revista Me Conta Essa História Dez. 2020 Ano I Nº 012 ISSN - 2675-3340 UFJ.
Por Amanda Silva Leão
[1] Discente do curso de História da Universidade Federal de Jataí, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Saúde – Nise da Silveira/CNPQ.
[2] Versão ampliada de texto apresentado no encontro da ANPUH-PARÁ 2020.
INTRODUÇÃO
Esse artigo busca compreender o processo de privatização da saúde que ocorria na década 1970, partindo dos discursos produzidos na revista Saúde em Debate, criada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), que nasce juntamente com a primeira edição da revista.
O CEBES, surge em 1976, partindo do movimento sanitário, composto em sua grande maioria por membros do Partido Comunista Brasileiro, tem como objetivo fazer veicular as ideias desse movimento entre o público médico que se encontrava insatisfeito com a saúde pública no brasil.
A saúde no Brasil, sofre historicamente com a falta de políticas de Estado sobre a saúde, como demonstra Hochman (2005) a busca por maior atenção à saúde pública se inicia com a luta do movimento sanitário na Primeira República em busca da formação nacional do país, porém o Estado só irá se preocupar de fato com essa questão depois da Revolução de 1930, juntamente com a mudança do sistema de produção no país.
Diante desse descaso do Estado, a saúde no Brasil é respaldada por recursos públicos, porém, conduzida pelo setor privado, que mesmo após a ampliação da saúde pública e maior intervenção do Estado nessa questão, não deixou de existir, já que o setor privado era usado como apoio para um sistema público de saúde que não comportava sua demanda.
Na revista Saúde em Debate, produzida por médicos nordestinos, de viés Marxista busca por meio da democratização da saúde lutar por liberdade em um período ditatorial, uma ditadura não somente militar, mas também burguesa, que ditava os caminhos pelos quais percorreriam os recursos para a saúde.
Nesse artigo busco compreender, utilizando a análise do discurso de Michel Foucault como a discussão entre privatização e democratização da saúde se deu em meio a uma ditadura que nos anos 70 não se encontrava tão forte como antes, e porque mesmo com a ampliação do acesso à saúde a população ainda assim não conseguia ter suas questões sanitárias e de saúde atendidas pelo Estado, utilizando dos discursos veiculados na revista Saúde em Debate de 1976 a 1978.
No debate proporcionado pela Revista e pelo CEBES é possível perceber a imensa insatisfação médica diante do discurso que paira a medicina no Brasil, mercantilizando tanto a prática como os profissionais da saúde e desrespeitando o real objetivo da medicina e para o que essa serve.
Para compreender tais discursos irei utilizar a análise do discurso foucaultiana abordada em A arqueologia do saber, onde Foucault usa da “escavação” do texto para chegar no cerne da problemática dos discursos ditos e não ditos.
Para Foucault (2008) compreender um discurso vai muito além de ler e entender as entrelinhas de um texto ou o que é dito pelo autor, acredita que é preciso buscar o momento em que este foi produzido e porque certos enunciados possuem mais credibilidade que outros, causa das redes de poder que se constroem na sociedade e legitimam alguns enunciados em detrimento de outros.
Foucault (2008) entende que diversos discursos são construídos na sociedade, porém alguns são creditados pelo poder em vigência e outros não, sendo essa uma das problemáticas da análise do discurso. A Revista Saúde em Debate apesar de possuir um discurso que vai contra a narrativa posta pelo poder estatal, ainda sim se mantém como um espaço de poder, sendo usada como veiculador do debate não somente científico como democrático sobre a saúde no Brasil.
Mesmo possuindo forte viés marxistas em meio a uma ditadura militar e empresarial ainda sim é um espaço de poder devido ao seu saber científico que é respaldado tanto pela sociedade quanto pelas instituições o que lhe garante permanência em locais de poder.
Partindo disso ao analisar a mercantilização da saúde no Brasil na década de 1970 exposta na revista Saúde em Debate, é preciso compreender o movimento que respalda sua privatização, que ocorre desde sempre no Brasil, porém no período de 1970, tem seu fortalecimento na ampliação da saúde pública.
Privatização da saúde
Durante o período ditatorial (1964-1985), o governo se manteve entre medidas repressivas e assistenciais, na saúde isso não seria diferente. Houve a ampliação do acesso a saúde para quase toda a população, que antes era restrito somente para assalariados, deixando a deriva grande parte da população brasileira, é nesse momento que o setor privado cresce utilizando de recursos financeiros públicos, sendo essa uma grande contradição em relação a sistema de saúde público que se ampliava:
No que se refere ao subsetor de serviços, é no período da ditadura que a cobertura, antes restrita aos segmentos assalariados formais, se expande para quase a totalidade da população. Durante todo o período ditatorial, o Estado interviu sobre a Questão Social por meio do binômio repressão assistência, ampliando o acesso a inúmeras políticas sociais, dentre elas a saúde (BRAVO, 2010), mas essa ampliação se deu pela compra de serviços do setor privado. Sem o Estado, o setor privado não teria como forjar autonomamente um mercado consumidor, dada a pauperização da população. (BRAVO, 2020. p. 41; MENICUCCI, 2007 apud CISLAGHI. 2019, p 62.)
Em 1963, um ano antes do golpe de Estado, era discutido na III Conferência Nacional de Saúde a municipalização dos serviços de saúde, no governo de João Goulart, definindo desta forma a descentralização da saúde, pautando o atendimento básico de saúde nos serviços prestados por auxiliares e se estendendo até o nível terciário, como intenção de desafogar os serviços médicos e distribuir melhor a assistência médica para a população carente e mais necessitada.
Com a chegada do golpe as reformas de base propostas para a saúde foram impedidas de serem colocadas em prática, recorrendo então a centralização e a privatização da saúde com a contratação de serviços privados pela previdência, pois com a ampliação da saúde pública o sistema em vigência no país não conseguia abarcar toda a demanda.
Ao se pensar na privatização dos serviços públicos, Juliana Fiuza Cislagh em seu artigo “Privatização da saúde no Brasil: da ditadura do grande capital aos governos do PT” entende a existência de uma relação entre a ampliação de serviços públicos na saúde com a crescente privatização da área.
A ampliação da assistência médica à população acabou por impulsionar o mercado privado da saúde no Brasil, já que este não se criaria só, sem a ajuda do Estado, devido ao fraco mercado consumidor existente no país para impulsionar a saúde privada.
Para Cislagh (2019) com uma população pobre e necessitada de recursos básicos para sobreviver, um mercado interno fraco e dependente do capital exterior, a manutenção de um sistema de saúde privado no país se tornava inviável. Desta forma o governo que já se via enfraquecido por anos de repressão e por crises econômicas, amplia a saúde para grande parte da população, fazendo isso sem antes propor um projeto que conseguisse atender toda essa nova demanda que surgia. Sendo assim, recorre ao processo de privatização da saúde para suprir essa necessidade, criando o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Nacional (INAMPS), órgãos responsáveis por contratar serviços privados de saúde para os beneficiários.
É nesse contexto de enfraquecimento da ditadura militar e empresarial que o discurso do movimento sanitarista ganha força, partindo do entendimento que o processo saúde-doença não era externo aos fatores sociais (COHN, 1989), diante disso ocorre também a ampliação do conceito de saúde que passa a ser compreendida dentro da realidade social brasileira saindo de sua esfera estritamente técnica.
Essa mudança do conceito de saúde pode ser percebida na primeira edição de 1977 da revista Saúde em Debate na matéria “Vendendo saúde o INPS e a seguridade social no Brasil segunda e última parte”, de Luis Eduardo Soares:
Acompanhemos a opinião respeitável de Ivan Lilich: “A análise da morbidade mostra que o meio (noção que inclui o modo de vida) é a primeira determinante do estado de saúde global de qualquer população. A alimentação, as condições de habitação e de trabalho, a coesão do tecido social e os mecanismos culturais que permitem estabilizar a população, desempenham papel decisivo da determinação do estado de saúde dos adultos e da idade em que tem possibilidade de morrer.” (SOARES, 1977, p. 37).
Soares ao trazer essa nova noção de saúde mostra uma visão contraditória em relação a lógica privatista pela qual a saúde brasileira passava, pois leva em consideração não somente a questão técnica da saúde que seria a medicina em si, mas rompe também com a dicotomia prevenção e cura (COHN, 1989), portanto ao enxergar a saúde como uma questão social, a lógica neoliberal de lucro pela qual a privatização se banca não pode ser mantida.
Visto isso o Estado ao ampliar a saúde para a população brasileira partindo de sua lógica tradicional vulnerabiliza esse processo aos interesses políticos e clientelísticos do mercado provocando assim o processo de privatização da saúde.
Diante disso Cislagh (2019) apresenta como parte desse processo privatizante a organização de serviços oferecidos pelo INAMPS e INPS que se dava em forma de três subsistemas: o próprio que se responsabilizava pelos serviços menos lucrativos para o setor privado, como serviços ambulatoriais, cabendo ao estado arcar com esses gastos.
O subsistema contratado que ficava sob a tutela do serviço privado, cabendo ali as internações, que passavam pelo processo de remuneração por unidade de serviço, era na unidade de serviço problematizada na Revista Saúde em Debate, que ocorriam os maiores casos de fraudes de corrupção, já que a remuneração paga pelo estado acontecia de acordo com o serviço prestado pelo médico, desta forma procedimentos muitas vezes desnecessários eram pedidos ao paciente apenas com a intenção de lucro.
No artigo apresentado na segunda edição de 1977 da RSD “A privatização dos hospitais governamentais, filantrópicos e universitários de ensino”, de Carlos Gentilli de Melo, a unidade de serviço é apontada pelo autor como causa da queda de qualidade no serviço médico oferecido à população.
Para Carlos Gentili a unidade de serviço seria uma forma sutil de privatização da saúde:
Conforme assinala Murilo Villela Bastos (6) o pagamento por tratamento realizado, induz o médico a buscar no paciente, algo que resulte em lucro. Os doentes crônicos passam a ser cultivados e, de certo modo, asseguram uma receita previsível. As pessoas que têm amígdalas e apêndice, são instadas a removê-los. Os casos propiciam não corresponde ao trabalho que dão. O parto tende a transformar-se, de ato fisiológico, em ato operatório. O exagero de exames complementares e de aplicação terapêuticas passa a ser confundido com a boa qualidade da medicina. A assistência domiciliar tende a desaparecer, por ser menos lucrativa em comparação com as facilidades do lucro no atendimento em consultório ou hospital. O médico é levado, quase inconscientemente, a fragmentar o tratamento em uma série de ´´atos`` médicos, de acordo com a tabela de honorários; e para finalizar, o diagnóstico registrado passa a ser aquele que justifique maior remuneração, anulando o valor das estatísticas de morbidade que tenham por base este registro. (MELO, 1977, p.26).
Gentili além de acreditar que o pagamento por unidade de serviço é uma grande fonte de corrupção no sistema de saúde também aponta para questão da precarização dos serviços públicos, demonstrando não apenas preocupação com a questão financeira que envolve procedimentos médicos e serviços médicos, mas se preocupando também com a real função do médico que tende a se deteriorar diante da busca por lucro.
Gentili ao trazer tais questões para RSB demonstra em seu discurso raízes nos preceitos do movimento sanitarista que se coloca como discurso de oposição a lógica privatista estatal, levantando também o debate ético e profissional diante da privatização da saúde.
Diante disso a Revista Saúde em Debate que possui grande viés democrático se preocupa com a ampliação dos serviços de qualidade para toda população, não sendo apenas um periódico de caráter exclusivamente científico, mas também político e social. (AMARANTE; RIZZOTTO; COSTA, 2015).
Político e social porque a Revista Saúde em Debate nasce da necessidade de se veicular o discurso do movimento sanitarista, que tinha como tática de ampliação adentrar nas instituições de poder, no caso o CEBES, por entender que ao inserir um discurso contra hegemônico em espaços institucionais se constitui então palco de luta (COHN, 1989), firmando o caráter político do movimento e assim também da revista, que era canal de disseminação desse discurso.
Por fim o terceiro subsistema seria o conveniado, onde nascem os planos de saúde, nesse caso, o INPS garante recursos as empresas para que essas os usem para cobrir as necessidades médicas de seus empregados.
Além desses subsistemas que surgiram em meio a privatização da saúde não podemos esquecer também a questão da indústria farmacêutica, que se aproveita da lógica privatista para vender mais e mais medicamentos para a população, mesmo que estes sejam desnecessários ou não resolvam o problema do enfermo, contribuindo também para a precarização da saúde dos brasileiros.
Foi também durante a ditadura que o mercado de medicamentos teve grande crescimento dentro do Brasil, principalmente com a criação da Central de Medicamentos (CEME) em 1971, que teoricamente tinha a função de aumentar o poder de competitividade da indústria nacional frente às transnacionais que invadiam o mercado brasileiro, porém por ser refém do capital exterior a CEME se tornou distribuidora de medicamentos para a rede oficial.
Ainda na segunda edição da RSD no ano de 1977 na matéria “Quimiobrás a defesa do consumidor nacional” publicada em nome da associação médica do Rio de Janeiro lança uma lista de remédios aptos para o consumo dos brasileiros e chama atenção para a necessidade de um debate sobre a mercantilização das drogas e a urgência da criação de uma indústria química nacional que retire das mãos internacionais a produção de drogas utilizada no Brasil, um debate que busque compreender quais são as drogas realmente necessárias para a população brasileira, e não atender a um mercado externo que visa apenas seu próprio lucro.
Sendo parte do discurso de privatização da saúde o embate entre a medicina curativa e preventiva toma força nos discursos médicos, visto que para o sistema de saúde que está sendo engolido pelo setor privado, a medicina curativa ganha palco em detrimento da medicina preventiva, sendo essa mais uma contradição na ampliação da saúde pública no Brasil.
Já que para população mais pobre a medicina preventiva se faz muito mais eficaz do que a medicina curativa, que é o foco dos serviços privados de saúde, já que o mercado lucra muito mais utilizando da medicina curativa, assim atendendo os interesses do capital.
Ainda em “Vendendo saúde o INPS e a Seguridade Social no Brasil - segunda e última parte”, Soares apresenta essa questão da medicina curativa:
A assistência médica das associações previdenciárias brasileiras está condenada ao malogro, enquanto persistir uma medicina prioritariamente curativa e não preventiva, pois 80% dos recursos gastos no setor da saúde são investidos na medicina curativa. E uma política sanitária preventiva consequente teria forçosamente de radicar seus princípios norteadores num projeto sócio-econômico paralelo. (SOARES, 1977, p.42).
Nesse trecho, Soares demonstra a profundidade social pela qual a saúde toca, pois ao abordar uma perspectiva de medicina preventiva, este também aponta para questão de que a medicina por si só, não consegue solucionar toda a questão de saúde necessária ao povo brasileiro. Soares aponta que a saúde brasileira estava em um processo de retrocesso, porque a fome aumentava, as condições de trabalho se encontravam cada vez mais precarizadas e a situação de habitação e higiene se tornavam piores com o empobrecimento das camadas populares e seu simultâneo crescimento.
Diante disso é preciso questionar a escolha da aplicação da medicina curativa na saúde pública, visto que grande parte da população se encontrava a deriva de políticas públicas que entendessem e atendessem suas necessidades, já que as condições financeiras da classe trabalhadora não eram capazes de suprir os gastos exigidos por uma medicina curativa, visto que a necessidade dessa população não se alicerça na cura de doenças, mas sim de estrutura social.
Saúde Pública e a luta por democracia
A Revista Saúde em Debate traz uma discussão importante sobre como o discurso médico que parte do movimento sanitarista utilizando de seu espaço de poder, questiona uma falsa democratização dos serviços públicos, pois mesmo expandido o sistema de saúde pública no Brasil a população ainda assim, não é totalmente contemplada.
Diante disso Emerson Merhy em seu artigo publicado na quarta edição da RSB no ano de 1977 intitulado de “Democracia e saúde” aborda a questão da luta popular como única maneira de se construir uma democracia que contemple o povo e vá contra a exploração dos recursos públicos por meio de grandes empresas internacionais e nacionais:
Este quadro, visto no interior da sociedade, demonstra que - as possibilidades do setor saúde, por si, sofrem um processo no qual as necessidades populares e os interesses dos profissionais assalariados sejam satisfeitos - é limitado, enquanto não reverter todo o domínio atual que existe na Nação. Domínio econômico dos grandes grupos multinacionais e políticos do Estado sobre qualquer manifestação e organização dos grupos subalternos. (MERHY, 1977, p 12).
A fala de Merhy nos remete não somente a luta popular por democracia através da saúde, mas também é um claro discurso anti-privatização e contra o imperialismo de países desenvolvidos sobre a situação da saúde brasileira que se encontrava refém não somente do capital exterior, mas também de ideologias privatistas que vinham de fora para lucrar em terras nacionais.
Em um momento de ditadura não só militar, mas também empresarial, o povo se via de mãos atadas diante de tal situação de opressão. Porém é nesse momento de crise e enfraquecimento do Estado que a classe trabalhadora também pode se levantar em prol de uma maior atenção para necessidades sociais de responsabilidade do Estado.
Ao se falar em democratizar a saúde no Brasil, podemos pensar na questão da privatização como um obstáculo na conquista dessa democratização, visto que para que isso ocorra, não basta apenas a institucionalização e intervenção estatal na área da saúde, mas é preciso lutar contra as garras de empresas privadas, criando de fato um sistema de saúde que entenda a realidade da saúde do povo brasileiro.
Diante desse processo de democratização da saúde no Brasil, o movimento sanitário tem grande importância e influência juntamente com o CEBES, pois um de seus preceitos é a participação popular nas decisões tomadas em relação a saúde. Um ponto importante propagado pela Revista Saúde em Debate era a participação popular, considerada de extrema importância naquele momento.
Essa lógica parte do entendimento do movimento sanitário que viria posteriormente a desencadear-se na Reforma Sanitária o que permite que diferentes realidades tomem destaques na luta por democracia, que no caso brasileiro se dá pelo deslocamento do poder para as camadas populares. (COHN,1989).
Merhy percebe o impasse existente entre a questão da melhoria da saúde brasileira com a questão democrática:
Basta um pouco de bom senso para se perceber que as soluções para os problemas de saúde do povo brasileiro não serão encontradas nos esquemas técnicos e racionalizadores, se estiverem desvinculadas da problemática mais ampla da sociedade. Hoje, isso fica mais claro porque as situações em crise iluminam muito o caminho e provam que qualquer solução técnica é política, e que qualquer solução política, no Brasil atual, passa pela questão democrática. (MERHY, 1977, p.7)
Percebe-se nesse discurso forte presença dos ideais do movimento sanitarista, visto que chama atenção para a compreensão dos problemas que envolvem a sociedade em si para que assim os problemas de saúde possam ser solucionados, já que para o movimento a compreensão de saúde vai além da técnica médica, se preocupando também com as condições de vida dos cidadãos brasileiros.
Além da preocupação com o meio em que se constrói uma saúde de qualidade a revista Saúde em Debate também aponta para a grande importância da participação popular na aplicação da saúde ao povo, cumprindo o papel a que se dispõe de dar espaço ao discurso opositor a lógica governamental de privatização e centralização dos sistemas de saúde.
Diante dessa proposta democratizante aderida pelo CEBES e pela RSD é importante perceber um forte discurso democrático e anti privatista que define uma saúde autenticamente democrática, como o direito universal e inalienável de todos os cidadãos brasileiros da promoção de condições que permitam a preservação de sua saúde, a consideração do caráter sócio-econômico dessas condições como: emprego, salário, nutrição e habitação. Reconhecimento da responsabilidade parcial das ações médicas e o reconhecimento do caráter social do direito a saúde sendo de responsabilidade do coletivo e do Estado a implementação das condições mencionadas. (Fleury, 1997)
Além de se pensar na saúde como um movimento democrático Merhy entende que essa democracia precisa ser pensada de forma crítica, como por exemplo a quem essa democracia serve e como esta surge:
O que se coloca aqui é se este momento surgiu através de uma batalha organizada e consciente dos grupos sociais ou se ele na realidade é o resultado do movimento espontâneo destes grupos, aliado à incapacidade do atual grupo dirigente, encurralado nas contradições do seu modelo de dominação, de exercer a hegemonia. (MERHY, 1977, p.7).
Nesse interessante trecho Merhy chama atenção para como está sendo construída essa democracia e por quem, visto que tal movimentação ocorreu devido ao enfraquecimento da ditadura que não se sustentava mais em sua estrutura de opressão, e não partindo de um movimento de oposição de fato.
O que também chama atenção nessa ideia de democracia que Merhy traz é a questão de que as camadas populares da sociedade brasileira se encontram em estado de extrema pobreza, fome e sem condições tanto de emprego quanto de habitação que fossem dignas enquanto o Brasil demonstrava acentuados índices de aumento de riqueza nacional naquele período.
Ou seja, onde essa riqueza se encontrava sendo que a população continuava em situações calamitosas e de péssimos índices de saúde, moradia e emprego?
Nesse ponto é possível perceber grande influência do discurso marxista e da ideia de saúde como um conjunto de fatores sociais e não somente técnicos que percorria o movimento sanitarista que se colocava sempre como oposição ao discurso hegemônico em questão.
É importante perceber esse caráter democrático e revolucionário trazido pelo CEBES e pela Revista Saúde em Debate principalmente diante do contexto em que essa se encontrava, pois, além de partir dessa lógica ainda chama atenção para como essa democracia estava sendo forjada, por quem estava sendo construída e para quem essa era voltada, baseada em um novo conceito e entendimento de saúde o qual não cabe a lógica privatista e neoliberal e também não atenda a sistemas autoritários.
Exemplo disso é a atenção e preocupação voltada para a participação popular na tomada de decisões sobre a saúde que afinal, só faz sentido se for voltada às necessidades populares.
CONCLUSÃO
Conclui-se então, que a Revista Saúde em Debate, traz para espaços de poder, que aqui no caso seria o CEBES como instituição, um outro viés do que pode ser considerado saúde e como essa pode ser aplicada na sociedade.
Essa nova concepção tem grande importância e reflete de certa forma até os dias atuais, as contribuições do movimento sanitarista juntamente como CEBES e a Revista Saúde em Debate, formaram uma resistência naquele momento contra as privatizações e em favor da democracia ao partir da ideia de que em um sistema totalitário a saúde brasileira nunca funcionaria.
Ainda hoje temos longos caminhos a serem percorridos na luta para que o direito a saúde seja plenamente contemplado, porém a saúde pública no Brasil se forjou na luta popular e continuará através desta.
COMO CITAR ESSE ARTIGO
LEÃO, Amanda Silva. Privatização da Saúde na Ditadura Militar: Uma Luta Por Democracia. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.12, dez. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em: https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/privatiza%C3%A7%C3%A3o-da-sa%C3%BAde-na-ditadura-militar-uma-luta-por-democracia. Acesso em:
REFERÊNCIAS
LIMA, Nísia; GERSCHMAN, Silvia; EDLER, Flávio; SUARÉZ, Julio. A Saúde na Construção do Estado Nacional do Brasil: Reforma Sanitária em Perspectiva Histórica. In Saúde e Democracia: História e perspectivas do SUS: 20. Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7. Ed. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 2008.
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COHN, Amélia. Caminhos da Reforma Sanitária. Lua Nova. São Paulo. Nº 19. Novembro de 1989.
SOARES, Luis. Vendendo Saúde o INPS e a Seguridade Social no Brasil: segunda e última parte. Revista Saúde em Debate. São Paulo. Nº 2. P. 47-38. 1º semestre de 1977.
MELO, Carlos. A Privatização dos hospitais governamentais, filantrópicos e universitários de ensino. Revista Saúde em Debate. São Paulo. N. 2º. P. 29-26. 1º semestre de 1977.
AMARANTE, Paulo; RIZZOTTO, Maria; COSTA, Ana. Memória de um movimento: a Revista Saúde em Debate e a reforma sanitária brasileira. Rio de Janeiro. Editora Fiocruz. 2015.
MERHY, Emerson. Democracia e saúde. Revista Saúde em Debate. São Paulo. N. 4º. P. 13-7. 2º semestre de 1977.
FLEURY, Sonia. A questão democrática na saúde. In Saúde e Democracia: a luta do CEBES: São Paulo. Lemos editorial e Gráficos LTDA. 1997.
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