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Natália Peres Carvalho

O UNIVERSO SOCIAL REPRESENTADO POR JOSÉ LINS DO REGO – UMA ANÁLISE DA OBRA “USINA” (1936).


 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Jan. 2021 Ano II Nº 013 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por Natália Peres Carvalho


[1] Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás e mestranda no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Goiás.

 

RESUMO


O presente trabalho busca fazer uma análise da obra “Usina” (1936) do autor paraibano José Lins do Rego. A obra, que tem como uma de suas características um realismo literário de excelência, encerra o chamado “ciclo da cana-de-açúcar” e proporciona ao leitor um panorama sociocultural e histórico do Brasil dos anos 1920 e 1930, principalmente da região Nordeste do país. Desse modo, buscaremos analisar o universo social representado no romance do autor, examinando as representações femininas presentes na obra, bem como as relações capitalistas que se dão no meio rural através dos engenhos e das usinas, dialogando com o contexto do governo de Getúlio Vargas.

Palavras-chave: Usina. José Lins do Rego. Realismo.

 

O Brasil da década de 1930


E veio andando. Mas foi vendo um mundo novo a cada passo.

(REGO, 2013, p. 87)


Ao pensarmos no contexto histórico, social e político vivido pelo Brasil na década de 1930 somos levados de imediato à figura de Getúlio Vargas, afinal ele é o grande protagonista da chamada “Revolução de 30”, que de acordo com Pedro Cesar Dutra Fonseca (1999) “pode ser considerada, sob vários aspectos, a primeira revolta ou movimento armado da história do Brasil com características marcadamente nacionais.” (FONSECA, 1999, p. 113), envolvendo todos os estados brasileiros e partindo principalmente do Rio Grande do Sul.


Em “Brasil: uma biografia”, Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling apresentam um panorama geral da década e dialogam com Fonseca quando abordam o surgimento da Aliança Nacional e seus objetivos para o contexto político do período em questão:

A coalizão oposicionista utilizava o termo “Liberal” para sublinhar a pretensão de introduzir na vida pública nacional um modo novo de pensar o Brasil, intimamente associado à emergência de um programa de modernização do país. “Liberal”, no caso, exprimia um impulso para a indústria, trazia à tona o tema da incorporação de novos setores sociais na vida republicana e indicava a disposição desse grupo, uma vez no poder, de enfrentar a problemática dos direitos sociais: jornada de trabalho de oito horas, férias, salário mínimo, proteção ao trabalho feminino e infantil (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 454-455).

E foi partindo desses objetivos que Getúlio Vargas direcionou o seu plano de governo ao longo dos seus quinze anos no poder, deixando sua marca registrada na política trabalhista brasileira ao criar as leis de proteção, que contemplavam desde a jornada de oito horas de trabalho até o direito à aposentadoria. As mudanças sociais, políticas e econômicas que se deram durante o período aconteceram acompanhadas de traços do fascismo europeu, como:

a ênfase no poder do Executivo personificado numa liderança única; a representação de interesses de grupos e classes sociais num arranjo corporativo, isto é, sob a forma de uma política de colaboração entre patrões e empregados, tutelada pelo Estado; a crença na capacidade técnica posta a serviço da eficiência do governo e acompanhada da supressão do dissenso (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 481).

Todo o contexto reverberou diretamente na produção cultural em diversas áreas e como bem afirma Antonio Candido (1984) “Quem viveu nos anos 30 sabe qual foi a atmosfera de fervor que os caracterizou no plano da cultura, sem falar de outros.”, referindo-se assim principalmente aos romancistas do período e também a tomada de consciência ideológica pela qual foram marcados.

A segunda fase do modernismo brasileiro, chamada de “Geração de 30” tem Raquel de Queiroz, Jorge Amado e Graciliano Ramos como seus principais representantes. A título de exemplos literários dos respectivos autores podemos citar a publicação de O quinze (1930), Cacau (1933) e Vidas Secas (1938). Mas o surgimento e fortalecimento de firmas editoriais durante a época, como é o caso da José Olympio, favoreceu a produção intelectual de outros nomes, como o de José Lins do Rego e Amando Fontes, que despontaram com as obras Menino de Engenho (1932) e Os Corumbas (1933).


Como analisa Cássia do Santos (1998), os romances aqui citados, assim como outros do período, possuíam algumas características em comum:

Ambientados no Nordeste, tinham como temática, em geral, a seca, a decadência dos engenhos e suas consequências. Buscavam contar a história do ponto de vista dos oprimidos, dos miseráveis, retratando o cotidiano sofrido da parcela pobre da população. Além disso, procuravam descrever fielmente o linguajar e os costumes dos habitantes da região que lhes servia de cenário.
Com eles, nascia o que se convencionou chamar de "romance do Nordeste" e que dominaria boa parte da ficção brasileira do período. Romances regionalistas, como se depreende do rótulo e do que sobre eles foi dito, não tardaram a despertar a atenção e a provocar reações em setores do meio literário que detectavam neles um caráter social exagerado (SANTOS, 1998, p. 109).

Sabendo que a literatura se configura como uma das principais formas de expressão artística e de comunicação de uma sociedade este trabalho se propõe a examinar de forma mais sistemática o romance Usina, do autor José Lins do Rego, publicado no ano de 1936. O romance em questão encerra o chamado “Ciclo da cana-de-açúcar”, do qual fazem parte as obras Menino de engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), Usina (1936) e Fogo Morto (1943) que sintetiza o ciclo.


De acordo com o próprio Lins do Rego, Usina é “a história do Santa Rosa arrancado de suas bases, espatifado, com máquinas de fábrica, com ferramentas enormes, com moendas gigantes devorando a cana madura que as suas terras fizeram acamar pelas várzeas.” (REGO, 1936, p. 21). O romance é dividido em duas partes, a primeira, intitulada “O retorno” nos apresenta de modo geral o personagem Ricardo e sua passagem em uma prisão localizada na Ilha de Fernando de Noronha e a segunda parte, “Usina", é onde de fato o romance se desenrola a partir das mudanças provocadas pela passagem dos engenhos para as usinas que refletiram em diversas transformações sociais. É nessa segunda parte da obra, onde podemos observar distintos pontos de vistas por meio do fluxo de consciência [1] dos personagens, que iremos guiar esta pesquisa.


Desse modo, buscaremos analisar o universo social que o autor apresenta em seu romance, verificando como o autor constrói suas personagens femininas, partindo da construção das personagens D. Dondon, Clarinda e Mrs. Richard. Dado o contexto em que a obra foi produzida iremos ainda examinar como as relações capitalistas de produção que se dão no meio rural através dos engenhos e das usinas, dialogando com o contexto do governo de Getúlio Vargas (1930-1945).


Bom Jesus: da grandeza a decadência


Na Paraíba a fama do dr. Juca, da Bom Jesus, crescia cada dia que se passava. O seu automóvel atravessava o comércio, enchendo a rua de lado a lado. No café do Maia os amigos do usineiro cercavam a sua mesa. Ninguém pagava. As mulheres da vida falavam do dr. Juca como de um protetor generoso. Havia uma Josefa, da rua da Areia, que tinha uma casa dada por ele. Os parentes censuravam a vida do Juca, mas os lucros da Bom Jesus cobriam, tapavam as fraquezas do diretor-gerente. A Bom Jesus andava de vento em popa. Dera mais de oitocentos contos de lucro na última safra. Aquilo que o velho José Paulino levara oitenta anos juntando, o seu filho ganhava numa safra, sem abrir os peitos de trabalho. (REGO, 2013, p. 78)


A chuva parara. E um sol de inverno cobria a Bom Jesus. O dr. Juca, encostado no braço de Rafael, saiu de cabeça baixa para o carro de boi.


E foram deixando a Bom Jesus. [...]


O povo olhava o carro e via com espanto o dr. Juca estendido como um doente. Nunca tinham visto um senhor de engenho naquele estado.

(REGO, 2013, p. 233-234).


O romance de José Lins do Rego, assim como o de outros autores da chamada “Geração de 30”, é marcadamente regionalista e neorrealista, trazendo em suas temáticas assuntos voltados principalmente para a decadência da sociedade patriarcal, as implicações geradas pela industrialização, os problemas enfrentados pelo trabalhador rural, a seca e a miséria, além de ricas descrições do ambiente em que estão inseridos os personagens, bem como seus costumes e crendices. Partindo dessas e de outras características presentes no romance do período em questão é que iremos construir uma análise do universo social apresentado por Lins do Rego em sua obra.


A trama se desenvolve partindo da consolidação da Usina Bom Jesus que “engolia aos poucos os restos do velho engenho” (REGO, 2013, p. 102) que havia sido o Santa Rosa. Tomando o romance como o grande documento histórico que ele de fato é, logo de início o leitor/pesquisador é colocado frente as transformações vivenciadas pelo Brasil na década de 30, como podemos observar no trecho abaixo:

Vinham trazendo o riacho do Vertente para a usina. Gente de picareta, pedreiros cavavam e construíam o leito para a água correr para a Bom Jesus. O feito do dr. Juca sairia nos jornais. Desviava-se o curso de um regato, era uma grande obra de engenharia. [...]
O riacho tinha um dono, seria mandado como boi de carro. Com as máquinas reluzentes de novas, com um riacho de mais de trinta polegadas d’água ali dentro de casa, a Bom Jesus estaria preparada para tudo. [...]
A chaminé da Bom Jesus orgulhava-se de um soberano de pulso. Só o dr. Luís olhava para tudo aquilo, medindo, avaliando, comparando. Falavam-lhe das maravilhas da fabricação, que seria a outra usina naquele ano. Seiscentas toneladas de cana, dando oitocentos sacos de açúcar por dia. De fato, se fosse verdade, aquela gente nunca mais saberia o que era dificuldade. Em Recife lhe falaram mal das máquinas americanas. Aparelhagem para usina só mesmo de ótima qualidade (REGO, 2013, p. 134).

O contexto de produção da obra é de grandes transformações no cenário econômico brasileiro, principalmente no que diz respeito ao processo de industrialização, haja visto que o governo de Getúlio Vargas provoca um grande arranque capitalista [2]:

Nessa etapa crucial de constituição do “capitalismo industrial” e do Estado capitalista no Brasil, condensam-se simultaneamente, num curto período histórico, as múltiplas faces de um processo de organização das estruturas de um Estado-nação e de um Estado capitalista cuja forma incorpora, crescentemente, aparelhos regulatórios e peculiaridades intervencionistas que estabelecem um suporte ativo ao avanço da acumulação industrial (DRAÍBE, 1985, p. 82).

Algumas configurações desse capitalismo em emergência podem ser observadas ao tomarmos como exemplo a clareza com que a classe dominante e a classe trabalhadora aparecem representadas no romance, evidenciando as relações de trabalho que as usinas passam a impor aos trabalhadores bem como a sociedade de modo geral nesse novo Brasil Moderno:

[...] A velha casa, onde o velho José Paulino vivera os seus oitenta e tantos anos, se reformara também. Ali na cozinha, nas portas largas por onde entravam e saíam os moradores e as negras, tinham posto grades de ferro. [...] Aquele ar bonacheirão, aquelas portas abertas, a cozinha sempre cheia de gente, tudo que era tão natural e tão seu, se fora. A casa-grande da usina não podia continuar a ser uma casa-grande de engenho. [...] A rua, a antiga senzala dos negros, não podia ficar bem defronte de uma residência de usineiro. Botaram abaixo. E as negras tiveram que procurar abrigo mais para longe. Avelina, Luísa, Generosa, Joana Gorda que fossem arranjar os seus teréns lá para o alto (REGO, 2013, p. 57).

Outra grande característica dos romances regionalistas se dá pela rica descrição do ambiente em que se encontram os personagens. Desse modo, ao desenrolar da trama o leitor passa a conhecer as singularidades da região descrita pelo autor. Tomemos como exemplo os trechos abaixo:

Passavam estações. Via chaminés de usinas, altas como torres, de tijolos encarnados, bem diferentes dos bueiros brancos dos engenhos. Como estaria o Santa Rosa virado em usina? [...] A casa do Santa Rosa estava na sua frente, bem nítida, a casa-grande, a gameleira, os pés de flamboyant, o curral, a casa da farinha, a rua aonde dormiam as negras que vinham do cativeiro. Teriam mudado tudo isto? (REGO, 2013, p. 51).
[...] A terra da caatinga era dura e pedrada. E para procurar água de beber, teriam que descer, às vezes, mais de três léguas, porque no tempo de seca não havia por lá uma gota d’água. [...] O Paraíba não era sempre bom para eles. Nas grandes enchentes comia-lhes os roçados, entrava de casa adentro, raspando tudo que tinham. Mas, passada a raiva, o rio era bom, entregava o seu leito para que o povo se servisse dele à vontade. Era o pai do povo na época das vazantes. Com três meses dava tudo: a batata-doce, o jerimum-deleite, a folha larga de fumo. Agora só teria que dar cana. [...] (REGO, 2013, p. 127).

A primeira citação faz referência ao personagem Ricardo quando este se encontra no trem que tomou para retornar a sua terra natal, deixando a prisão na Ilha de Fernando de Noronha. Em seu retorno, ele vem acompanhado por pensamentos sobre o que encontrará, o que estará da forma como ele se lembra de e o que terá mudado. Nesse mesmo capítulo, um de seus companheiros de viagem fica admirado com a grandeza dos canaviais, o que leva Ricardo a observar a paisagem a sua volta e concluir que “Aquele era o seu rio, a água barrenta dos seus banhos, das travessias, dos cangapés.” (REGO, 2013, p. 53), mostrando um sentimento de pertencimento ao lugar por parte do personagem em questão.


Já a segunda citação é sobre as memórias da Mãe Avelina que “para matar as saudades [...] contava a história do povo, obrigado a morar na caatinga.” (REGO, 2013, p. 127). Assim como muitas outras histórias, essa lhe sai dos lábios com tristeza, pois para ela era difícil ver a sua gente tendo que abandonar a Várzea para tentar sobreviver na caatinga.

O primeiro trecho, ainda que de forma implícita, e o segundo mostram como os personagens são dependentes do meio em que estão inseridos e consequentemente, como estão sujeitos a ele. Essa característica do romance regionalista é intensificada ao longo da narrativa construída por José Lins do Rego, haja visto que o autor se vale dessa relação de dependência para tornar a situação dos personagens ainda mais trágica.


O misticismo e as crendices populares também se fazem presentes no romance. Aqui o caráter regionalista da obra é observado principalmente através do personagem Feliciano, responsável pelas atividades religiosas do local. O mesmo já se encontrava bem avançado em idade e que não aguentando mais trabalhar fora enxotado para a caatinga, onde sua principal ocupação era a sua devoção aos santos católicos, realizando inúmeras novenas que atraiam pessoas de longe, que “Falavam delas, como de uma estação do ano. Dizia-se “no tempo da novena de Feliciano”, como se falava em são João e nas festas de fim de ano.” (REGO, 2013, p. 113), expressando assim um costume popular.


Como dito anteriormente, o processo de industrialização, aqui representado pelas usinas, provoca mudanças em diversos âmbitos, como por exemplo, nas relações sociais que se estabelecem na sociedade. No romance, o personagem Feliciano era muito respeitado “No tempo do velho José Paulino” (REGO, 2013, p. 114), ou seja, na época dos engenhos, o que não mais acontece, pois “Veio [...] a usina e não respeitou o oratório de Feliciano, que teve que deixar a casa de telhas da beira da estrada e conduzir os seus santos para o alto, acolher santo Antônio e São Sebastião debaixo de folhas de catolé.” (REGO, 2013, p. 113-114).


Frente a essa situação, Feliciano se entristece e abandona suas novenas, passando a ser alvo de especulações por parte de algumas pessoas, que promoviam boatos “de que o negro se deixara vencer pelo demônio.” (REGO, 2013, p. 115) e de que “havia sido ele até lobisomem [...].” (REGO, 2013, p. 115), reforçando aqui as crendices e superstições. Pode-se observar que o misticismo é reiterado por Lins do Rego nas passagens onde Feliciano prenuncia que “Deus não esquecia, que Deus vingaria” (REGO, 2013, p. 114) e que “Viria uma peste para a usina. A bexiga-lixa cortaria o couro do povo. Uma febre, um cólera deixaria gente na terra sem sepultura.” (REGO, 2013, p. 132).


Aparentemente, Feliciano enlouquece em meio a miséria a que foi subjugado e morre na sua própria casa:

Uma noite correu uma notícia: a casa de Feliciano estava pegando fogo. [...] O povo foi olhar, de boca aberta, para o sinistro, sem saber o que fizesse. E nada tinham mesmo que fazer. [...] A carne de Feliciano cheirava como carne de boi nas brasas. Não houve ninguém com a coragem de arrombar a porta e tirar o negro de dentro. [...] Ali estavam para mais de duzentos homens e nenhum se apresentara para aquela obra de caridade. [...] O povo ficou olhando até que o fogo não tivera mais nada o que queimar. E os santos? Procuraram nas cinzas e não viram sinal do oratório. [...] Então o milagre se espalhou: os santos de Feliciano se tinham escapado do incêndio. [...] Feliciano fazia fogo dentro de casa e uma faísca pegara na palha. Castigo do céu. O diabo não havia podido com Deus. [...] E dos santos ninguém sabia. Nem se via sinal do oratório. Fora um milagre. [...] (REGO, 2013, p. 146).

A morte de Feliciano se converte em milagre, trazendo de longe romeiros para visitar o local onde tudo havia acontecido. Ladainhas, novenas, festejos e rezas passam a movimentar o local. Porém, toda essa movimentação não agrada a todos:

Mas agora a usina quebrava cana, seiscentas toneladas de cana entravam nas suas esteiras e oitocentos sacos de açúcar saíam de suas turbinas. O Santa Rosa evaporara-se, fora-se. O gerente do campo já se queixava ao dr. Juca da impertinência daqueles devotos. Os eitos se enfraqueciam. Era preciso acabar com aquela aglomeração de gente inútil, com aquele rebuliço que perturbava a vida agrícola. Aonde se vira os serviços de uma usina, da importância da Bom Jesus, ameaçados com uma tolice, porque um negro velho morrera queimado e um oratório se sumira? (REGO, 2013, p. 148).

Por meio desse trecho nota-se mais uma vez os desdobramentos ocasionados pela modernização em efervescência no país, onde algumas “tolices” já não cabem mais. Lins do Rego constrói assim uma crítica aos modos de produção em voga no momento, refletidos nas relações de trabalho da população local.


Pode-se observar ainda que a figura de Feliciano é utilizada para representar um rompimento entre tempos. Através de trechos como “no tempo da novena de Feliciano” (REGO, 2013, p. 113) fica evidente que a época dos engenhos é tida como um tempo bom, diferente do período das usinas, que reserva a muitos uma vida “debaixo de folhas de catolé.” (REGO, 2013, p. 114).


D.Dondon, Clarinda e Mrs. Richard: A mulher em Usina


Mulher bem que via as coisas melhor que os homens. Eles dizem que não, que mulher não sabe para onde vão os negócios. Ela tinha aquele receio de que um dia viesse um arrependimento.

(REGO, 2013, p. 60).

As mulheres rendiam da melhor forma. Até aquela brasileira Clarinda estava dando conta muito bem do seu recado.

(REGO, 2013, p. 69).

Aquela vida de andar sozinha ou com homens, que não eram o seu marido, dera à americana uma fama que ia até a cidade. [...]

(REGO, 2013, p. 156).


Em Usina, José Lins do Rego apresenta diversas personagens femininas ao longo do enredo do seu romance. Neste tópico analisaremos três das representações femininas [3] que são apresentadas na obra através das figuras de D. Dondon, esposa do Dr. Juca, Clarinda, prostituta da Pensão Mimi e também através de Mrs. Mary, a “americana”.


D. Dondon nos é apresentada como esposa recatada e mãe dedicada, sendo seu zelo pela casa, o marido e os filhos as suas principais formas de ocupação. Ela é mais uma das personagens que olha para os antigos tempos com saudade:

A vida para d. Dondon tinha mudado, não havia dúvida. No outro tempo era bem diferente. Marido e mulher viviam mais juntos. Ela se sentia mais feliz naqueles tempos do Pau-d’Arco, com os filhos pequenos e Juca saindo para o serviço, sem aquelas preocupações de agora. E as viagens, as corridas de automóvel e as noites em claro, vendo a moenda comendo cana, vendo o açúcar, reclamando dos cozinhadores. A vida para d. Dondon se complicara (REGO, 2013, p. 69).

Em uma sociedade marcadamente patriarcal e machista, suas ideias a respeito dos empreendimentos do marido jamais poderiam ser expressadas em voz alta e é por isso que Lins do Rego nos apresenta as mesmas através dos fluxos de consciência da personagem. Por meio deles é possível notar a insatisfação e o receio de D.Dondon pelas atitudes do Dr.Juca:

[...] Aquelas grades que o marido mandara fazer na porta da cozinha pareciam de uma cadeia. Nada tinha, porém, que fazer. Era fazer o que o marido queria. Ele mesmo lhe dissera que não pensasse que vida de usina era a mesma coisa que de engenho. Precisavam olhar para as menores coisas, senão tudo ia de águas abaixo (REGO, 2013, p. 61).
Não podia negar dinheiro para os santos. Deus protegia a sua família. [...] Juca gozava a saúde que gozava, nunca tivera um filho aleijado, de beiço partido, como a sua irmã Marta tivera. [...] Devia isto à proteção de Nossa Senhora da Conceição. [...] Juca não era caridoso como devia ser. Podia ser mais caridoso. [...] E no entanto o que Juca fazia pelos pobres? Não fazia nada. O marido precisava mudar. [...] Era por estas coisas que d. Dondon temia. Deus podia abandonar a proteção que vinha dando a todos os seus (REGO, 2013, p. 64).

D. Dondon via as atitudes do marido como passos rumo a ruína da sua família e permanecia em silêncio por saber que suas opiniões jamais seriam ouvidas. Porém, seu silêncio não a impede de tomar algumas decisões em favor de si própria e dos seus filhos, o que é possível por se encontrar vivendo longe do marido. Desse modo, de todas as mulheres presentes no romance, D. Dondon é a que mais transita por diferentes espaços, indo da usina para sua casa na Paraíba e também para a Praia Formosa. Quando Dr. Juca adoece e eles assistem a decadência da Usina Bom Jesus cada vez mais perto, D.Dondon decide por si só proporcionar a Clarisse, sua filha mais velha, uma festa de casamento vendendo as “cabeças de boi, gado que ainda vinha de seu tempo de solteira” (REGO, 2013, p. 192) para proporcionar a filha um “casamento de arromba.” (REGO, 2013, p. 192).


Observamos assim que José Lins do Rego traz para o seu romance os sentimentos e angústias de uma mulher, ainda que esses fiquem em seu íntimo, guardados em seu silêncio. De todo modo, a importância de D.Dondon se configura na medida em que ela faz uma avaliação das atitudes de Dr. Juca e sua má gerência da Usina Bom Jesus, reflexo de um patriarcalismo em crise, resultando na falência da família.


Outra personagem que nos é apresentada no romance é Clarinda, uma “mulher da vida” que mantém um relacionamento extraconjugal com Dr. Juca. Não temos muitos detalhes a respeito de sua trajetória, porém sabe-se que ela inicia sua vida na prostituição aos 16 anos, quando conhece o coronel Epifânio, da Imbu e em seguida é mandada por ele para a Pensão Mimi.


No trecho abaixo podemos observar um pouco da relação entre o usineiro e a prostituta:

Agora Clarinda tinha o seu usineiro certo, o dr. José de Melo, da Bom Jesus. Jacqueline lhe dissera para tomar conta do coronel, que rendia, que era mesmo uma mina. Todas as semanas, às quartas-feiras, o automóvel dele parava na porta da pensão. O champanha corria. Dinheiro de açúcar não regateava. Jacqueline se desdobrava em agrados, vinha para a mesa conversar com um freguês de primeira, dando gastos às bebidas caras [...] (REGO, 2013, p. 71)
Às vezes o dr. Juca chegava com outros. Jacqueline vinha fazer sala aos convivas. E a conversa dos homens era a de sempre. Falavam de safras, tratavam de preço de cana, de tabela de fornecedores (REGO, 2013, p. 72).

A Pensão Mimi retrata dessa forma um dos espaços públicos onde os homens buscavam alimentar os seus prazeres, que variavam conforme seu poder aquisitivo. A respeito da segunda citação trazida aqui é interessante notar que Jacqueline, dona da pensão, aparece como uma “empresária” que inserida em uma sociedade capitalista se adapta a ela para assegurar seu bem estar financeiro se valendo da força de trabalho de outras mulheres, que precisavam sobreviver e se viam atraídas pela vida de luxo que a prostituição de seus corpos poderia lhes proporcionar.

A última personagem feminina aqui analisada diz respeito a Mrs. Mary, esposa do Sr. Richard, que trabalhava como químico na Usina Bom Jesus. Ela é representada como a mulher que causa espanto a sociedade por seu comportamento pouco convencional para os padrões femininos vigentes na época:

O Dr. Richard trouxera a mulher, uma americana de lábios grossos e de olhos vivos, de uma vivacidade que não se continha. O povo da usina olhava para a mulher do químico com espanto. Ela não parava. [...] A Mrs. Richard modernizara o pedaço que era seu, com o seu gosto [...] (REGO, 2013, p. 156).
Aquela vida de andar sozinha ou com homens, que não eram o seu marido, dera à americana uma fama que ia até a cidade. Ela também pouco estava sabendo o que pudesse ganhar nas terras do Brasil. O que queria era levar, com o marido, os seus dias de trabalho forçado da melhor maneira possível (REGO, 2013, p. 156).
O povo dos engenhos não achava direito aquela mulher escanchada em cavalos, andando de manhã e de tarde pelos campos, passeando de baratinha, fumando cigarro. E ninguém queria se aproximar dela (REGO, 2013, p. 156).

Nota-se assim que Mrs. Mary aparece como uma mulher a frente de seu tempo, levando sua vida de forma que não era bem vista pela sociedade. Sociedade essa, que apesar de estar passando por um processo de modernização em diversos âmbitos se recusa a aceitar essa característica em uma mulher, vendo com maus olhos os passeios a cavalo, o fato dela dirigir seu automóvel e sua amizade com outros homens.


Todos os comportamentos de Mrs. Mary que fogem do padrão imposto pela sociedade da época parecem ser perdoados e deixados de lado por ela estar inserida dentro de uma instituição social, que é o casamento, sendo antes de tudo “Uma dona de casa, como qualquer senhora de engenho.” (REGO, 2013, p. 159). Pois se por um lado a “americana” gostava de andar sozinha, dirigir seu carro e fumar quando bem entendia ela também “gostava de seu marido e [...] cuidava de tudo o que era da casa.” (REGO, 2013, p. 159). Desse modo, fica evidente o machismo ao qual Mrs. Mary também estava condicionada.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Então Ricardo correu, pulou o balcão da venda, se agarrou na tranca para abrir.

[...] E uma bala pegou-o pelas costas.

O povo entrou pela porta escancarada, passando por cima do corpo do negro ferido. E aqueles braços semimortos tiveram força para matar gente.

[...] Naquela noite começara a relampejar nas cabeceiras do Paraíba.

(REGO, 2013, p. 223)


Esse trabalho buscou fazer uma análise da obra “Usina” (1936) de José Lins do Rego. Dentro dessa pesquisa se fez indispensável analisarmos o universo social representado no romance do autor, examinando as representações femininas presentes na obra, bem como as relações capitalistas que se dão no meio rural através dos engenhos e das usinas, dialogando com o contexto do governo de Getúlio Vargas.


Ao fim dessa análise chegamos à conclusão de que a obra em questão se constitui como grande objeto histórico e como fonte inesgotável de estudo para compreendermos as transformações vividas no início do século XX, mas precisamente nos anos 20 e 30, onde o Brasil passa por mudanças significativas durante o governo de Getúlio Vargas, que insere o país num cenário de modernização e industrialização. Transformações essas que são típicas da sociedade capitalista, como afirma Goldmann (1991) em Dialética e Cultura:

Isto é o fenômeno social fundamental da sociedade capitalista: a transformação das relações humanas qualitativas em atributo quantitativo das coisas inertes, a mnifestação do trabalho social necessário empregado para produzir certos bens como valor, como qualidade objetiva desses bens; a reificação que consequentemente se estende progressivamente ao conjunto da vida psíquica dos homens, onde ela faz predominar o abstrato e o quantitativo sobre o concreto e o qualitativo (GOLDMANN, 1991, p. 108).

Desse modo, todo o contexto do período está imbricado no romance, que trata de diversas questões sociais e apresenta ao leitor um panorama político e econômico da época e que é apresentado ao leitor ao longo da narrativa.


A morte de Ricardo na citação inicial desse tópico, além de representar o protagonismo do personagem dentro do romance, possibilita a reiteração do que buscamos mostrar aqui, que é o declínio de uma sociedade patriarcal, bem como sua tragédia moral e ecológica, o que gera uma série de modificações no que diz respeito a ordem social e familiar.

A respeito das representações femininas apresentadas por José Lins do Rego em seu romance podermos notar que o autor constrói personagens variadas, desde a classe social a que pertencem até seus comportamentos. Dado o contexto de produção da obra nota-se ainda que Lins do Rego se vale de técnicas literárias para dar voz as suas personagens femininas, onde apenas o leitor pode escutá-las através de seus fluxos de consciência.


Conclui-se ainda que a obra de José Lins do Rego é fundamentalmente regionalista, representando muito bem a realidade nordestina em seus romances, tanto dos que fazem parte do chamado “ciclo da cana-de-açúcar” quanto de outras obras, como Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953). Assim, Lins do Rego constrói sem romance abordando as tradições e costumes, o misticismo e as relações sociais e econômicas em voga no Nordeste brasileiro, sem atribuir juízo de valor a sua narrativa, o que faz com que suas obras sejam de grandiosas enquanto objetos de estudo sociológico e documental para pesquisadores.

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO


CARVALHO, Natália Peres. O Universo Social Representado Por José Lins do Rego – Uma Análise da Obra “Usina” (1936) In:. Revista Me Conta Essa História, a.II, n.13, jan. 2021. ISSN 2675-3340. Disponível em: https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/o-universo-social-representado-por-jos%C3%A9-lins-do-rego-uma-an%C3%A1lise-da-obra-usina-1936. Acesso em:

 

REFERÊNCIAS


CÂNDIDO, Antônio. A Revolução de 1930 e a Cultura. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, n° 4, São Paulo, p. 27-36, abril de 1984.


DRAÍBE, Sônia. Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do Estado e as alternativas da industrialização no Brasil, 1930-1960. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.


FONSECA, Pedro Cezar Dutra. A gênese regional da “Revolução de 30. Revista Estudos Econômicos, São Paulo, v. 29, n. 1, 1999, p. 113-127.


GOLDMANN, Lucien. A reificação. In: GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 105-152.


HUMPHREY, Robert. O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Virgínia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.


PINTO, João Alberto da Costa. Sobre a identidade do intelectual na produção da sociedade capitalista. Revista UFG, Goiânia, n. 10, 2011, p. 111-119.


REGO, José Lins do. Usina. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.


SANTOS, Cássia. Romance (a)político e crítica Literária nos anos 30 e 40. Letras, Curitiba, n. 49, 1998, p. 107-124.


SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


TEDESCHI, Losandro Antonio. As mulheres e a História: uma introdução teórico metodológica. Dourados, MS. Ed. UFGD, 2012.

 

[1] Entende-se aqui o fluxo de consciência como uma técnica literária narrativa, onde de acordo com Robert Humphrey (1954) o romance que se vale deste artifício “pode ser mais rapidamente identificado por seu conteúdo, que o distingue muito mais do que suas técnicas, suas finalidades ou seus temas. Por isso, os romances a que se atribui em alto grau o uso da técnica do fluxo da consciência provam, quando analisados, serem romances cujo assunto principal é a consciência de um ou mais personagens; isto é, a consciência retratada serve como uma tela sobre a qual se projeta o material desses romances.” (Humphrey, 1954, p. 2). Por ser bastante abstrato e amplo Humphrey caracteriza o fluxo de consciência a partir de quatro características: monólogo interior direto, monólogo interior indireto, autor onisciente e solilóquio.

[2] Parte-se aqui da ideia de que “Capitalismo é um modo de produção de integração, todas as realidades sociais de uma formação social capitalista estão integradas ao seu vértice fundamental: a exploração da força de trabalho, não existe nenhuma materialidade socialmente institucionalizada fora desse espectro totalizante.” (PINTO, 2011, p. 111). Onde “O fato histórico fundamental do capitalismo é a prática institucional da exploração; assim, é da produção e realização da mais-valia que se constrói todo o edifício institucional do capitalismo.” (PINTO, 2011, p. 111).

[3] Compreende-se como representações femininas, a partir de Tedeschi (2012), práticas discursivas que atribuem leituras do que se compreende por determinados grupos e culturas sobre o que é ser mulher, lhe atribuindo valores, lugares sociais, distinções com demarcação de gênero, papéis, etc.

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