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O QUARTO DE DESPEJO NO SÉCULO XXI


 

RESENHA

 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Out. 2020 Ano I Nº 010 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por Maria Eduarda Durães Martins

Estudante do Curso de História da UFJ e participante do clube de leitura escritAS

 

Você já leu algo e teve a sensação de não saber descrever os sentimentos surgidos a partir disso? Me sinto confusa sobre o que sentir e dizer, com tantas variedades de temas trazidos por Carolina Maria de Jesus em Quarto de Despejo. Este livro começou a ser escrito no ano de 1995, momento em que a autora tinha 41 anos, três filhos, uma condição de favelada e de catadora de papéis, tendo que passar por muita desigualdade, solidão, trabalho excessivo e principalmente, fome. Carolina Maria de Jesus hoje é considerada uma das primeiras escritoras negras e está entre as mais influentes autoras brasileira. Ela nos presenteia com um diário cheio de detalhes sobre como é, para uma mulher preta, periférica, mãe solo e catadora, viver em um mundo desigual que, por todo tempo, reafirmavam essas condições precárias na qual ela vivia.


Carolina Maria, nascida no interior de Minas Gerais, parte quando jovem para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Neste momento, ela consegue um barraco na favela do Canindé, local atualmente extinto, mas que foi onde ela viveu todo o período em que a obra foi escrita. Os personagens principais desses relatos são: Vera Eunice, José Carlos e João José – seus filhos por quem ela lutava e fazia de tudo – e os seus vizinhos – dando mais detalhes sobre aqueles com quem ela tem certas desavenças.

Apesar de o livro ser escrito em forma de relatos, Carolina Maria de Jesus não escrevia todos os dias e isso se dava pela questão da fragilidade causada por doenças e fome. Sua escrita testemunhal, com até mesmo alguns erros ortográficos, possibilita a reflexão sobre como a desigualdade e a extrema marginalização impactava na vida de pessoas, sobretudo mulheres, mães e negras. O diferencial é a forma como ela trazia essas denúncias, pois o que se sente ao ler Quarto de Despejo é uma aproximação com a realidade que ela descreve e com a própria Carolina (espero que ela me permita chama-la de forma próxima e carinhosa). É como se estivéssemos cara a cara, tomando juntas uma xicara de café e escutando seus desabafos. Vale ressaltar que a preocupação maior não é transcrever sobre todos os relatos da obra, mas sim o impacto que ela traz e como se configura tão real e atual agora em 2020, mesmo tendo se passado 60 anos depois de sua publicação.


Digo que é uma obra que poderia ter sido escrita neste exato momento em que vivemos, pois ao longo de Quarto de Despejo Carolina Maria traz assuntos sobre feminismo, negritude, violências - desde a doméstica à do Estado -, mortes infantis, política, suicídio e, como principal personagem, ela traz a fome. Sobre o feminismo e negritude – além do mais importante, que é sua vivência enquanto mulher preta e mãe solteira cujo apesar de tantas dificuldades nunca aceitou auxilio de nenhum dos pais de seus três filhos e ainda sim, sempre os criou com total esforço, dignidade, amor e compreensão – Carolina vai ainda sempre questionar o porquê das mulheres não estarem nos espaços, de serem independentes ou até mesmo sobre o porquê da ausência de mulheres nos livros sobre a história política do país. Ela escreve com muito amor sobre sua condição de mulher preta, com muito orgulho sobre seu corpo, cabelo e traços e ainda pede para que se existir outras encarnações, que ela venha como preta em todas.


Acerca das violências, ela aponta sobre o alcoolismo, sobre a violência doméstica sofrida por essas mulheres e crianças da favela por seus companheiros ao chegarem bêbados em casa, retrata também sobre a violência e o esquecimento por parte do Estado para com as pessoas que moram na favela. Carolina queria, ainda, a extinção desses espaços, pois como o próprio nome do livro diz: quarto de despejo é nada mais que a periferia, distante do centro, onde ninguém olha e ninguém se importa. Acerca da política, Carolina Maria de Jesus chega a citar o nome dos sujeitos que ocupavam o poder àquela época. Ela traz o Jânio Quadros, prefeito de São Paulo, Juscelino Kubitschek, presidente do país, e Adhemar de Barros, o governador de São Paulo. Sobre eles a autora escreve com muitas críticas, dizendo inclusive que políticos só procuram o povo pobre e favelado em época de eleições. No livro, ao falar sobre suicídio, Carolina Maria escreve algumas vezes que o via como uma possível solução. Os dois relatos que mais me chocou é quando ela diz:

[...] Quero ver como é que eu vou morrer. Ninguém deve alimentar a ideia de suicídio. Mas hoje em dia os que vivem até chegar a hora da morte, é um herói. Porque quem não é forte desanima (p.55).
16 de junho. Hoje não temos nada para comer. Queria convidar meus filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles são cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo? (p.152)

É nítido o desespero de uma mãe para chegar ao ponto de pensar em um suicídio coletivo com seus próprios filhos e, se observamos bem, veremos que não é falta de vontade de viver, mas sim pela fome imensa que invade o seu ser e que a impossibilita de ter saúde mental e física, tanto quanto condições mínimas para sobreviver. A fome, como dito anteriormente, é realmente a protagonista dessa obra e talvez a escrita mais doída sobre seja essa:

"13 de maio de 1958. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. Continua chovendo. Eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair. Eu tenho tanta dó dos meus filhos. Quando eles vêem as coisas de comer eles bradam: Viva a mamãe. A manifestação me agrada. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura pra Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim: Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina. Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A minha filha Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a dona Alice. Ela me deu a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual, a fome!" (p. 27)

Reitero meu espanto ao perceber que uma obra publicada em 1960 tem forte paralelo com o ano de 2020, pois ainda há muitas crianças e adultos morrendo de fome, principalmente as mulheres e os negros (ROSSI, 2014). Carolina questionou em certo momento, inclusive, como o arroz e o feijão também puderam a abandonar, pelas coisas terem ficado mais difíceis e os valores subirem. Então, percebem alguma similaridade com o país em que vivemos hoje?

Por fim, afirmo que Carolina Maria de Jesus viveu sua realidade de maneira muito fiel ao que era e ao que acreditava ser correto. Mesmo com a maior desgraça, ela continuou resistindo e incentivando os filhos a estudarem, pois, a leitura e o conhecimento, para uma mulher que só cursou dois anos de escola, sempre foi o mais importante e fundamental. Obrigada Carolina Maria de Jesus, por ser um exemplo e por ser resistência, até o final dos seus dias. Gratidão por nos proporcionar obras que transforma e muda a vida de seus leitores. Assim como você, eu espero que um dia essa escravatura atual chamada fome, acabe.

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO


MARTINS, Maria Eduarda Durães. O Quarto de Despejo no Século XXI. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.10, out. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em: https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/o-quarto-de-despejo-no-s%C3%A9culo-xxi . Acesso em:

 

REFERÊNCIAS


JESUS, Carolina Maria de; Quarto de Despejo: diário de uma favelada. Edição Popular. São Paulo: Francisco Alves, 1963.


ROSSI, Marina; Mulheres e negros são os mais atingidos pela fome no Brasil; El País, 2014. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/18/politica/1418927716_964759.html.


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