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O LOUCO E O SERTÃO: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA EM JATAÍ A PARTIR DO ALBERGUE SÃO VICENTE


 

Albergue São Vicente de Paula (1952). História da Saúde. Higienização. Discurso.

 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Mar. 2020 Ano I Nº 003 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por João Vitor Leal Lobato


[1] Acadêmico do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Jataí.

 

RESUMO


Esta pesquisa busca analisar a relação entre caridade e controle social a partir da instituição Sociedade de Beneficência Albergue São Vicente de Paulo em Jataí, criado no ano de 1952 por um grupo de espíritas onde seu objetivo era o acolhimento de necessitados através do trabalho caridoso. A partir da criação do Albergue haverá uma normalização do comportamento na cidade, o qual indivíduos que seus comportamentos não condiziam com o discurso de normalidade serão vitimas de exclusão e controle social, a partir da ideia geral da nação de construir uma civilidade. Foram analisados diversos documentos da instituição, porém neste nos restringiremos ao Registro dos Estatutos, feito no dia primeiro de agosto de 1952, o qual se encontram diversas intenções de controle a partir dos grupos em vulnerabilidade social da sociedade, com o claro desejo de enquadra-los nos padrões de comportamento considerados normais, o documento foi analisado seguindo as concepções de Analise do Discurso alicerçando-se em Foucault.

 

Albergue: Controle e Higienização


Com a criação do Hospital psiquiátrico, pessoas são incluídas na categoria de louco que é institucionalizada e legitimada pelo saber médico, sendo esta categoria criada antes mesmo de se pensar no hospital. É necessário se situar em que momento há a criação, a categorização do louco e a institucionalização regidas por normas de um saber científico.


Cada meio social, a partir de seu convívio em sociedade, estipula um comportamento normal, que é baseado na identificação do que é diferente e o que é anormal para a maioria deste de grupo, segundo Ana Bock, cada cultura constrói suas “próprias zonas patológicas” (BOCK, 2003, p. 30). Porém esta relação entre normal e anormal enquanto não institucionalizada é mais tênue, não tão agressiva e adaptável, Segundo Éder M. de Paula (2011):


Até a construção do Hospital Psiquiátrico Profº. Adauto Botelho em Goiânia, a categoria louco não fazia parte efetiva da realidade do estado, não havia local de legitimação do discurso excludente. Sendo assim, arrisco dizer aqui que não haviam determinados comportamentos regidos por normas de um saber científico, que estabelecesse padrões. Sem os espaços de emissão e legitimação do discurso excludente/enclausurador não há categorização de louco e consequentemente a produção da loucura institucionalizada. É fato que indivíduos que se relacionam acabam por criar normas de convivência, que abarcam também os comportamentos. Contudo, não funcionam enquanto um saber institucionalizado, assim, passam a ser adaptadas nos diversos contextos sociais. (PAULA, 2011, p. 47)

Portanto, mesmo que estejamos falando de uma cidade diferente, até aqui o processo é semelhante, se não o mesmo. A partir de 1952, a criação do Hospital, em Jataí vai constituir uma singularidade, algo semelhante ao Hospital psiquiátrico de Anápolis, antes estes viajantes das ruas da cidade agora são impostos a um local, contra sua vontade e a de seu corpo.


Esta particularidade do Hospital de Jataí se dá ao fato de que nem todos que se encontravam na condição de interno do albergue, foram categorizados com certo tipo de “doença mental”, a categoria de louco vai ser definida de maneira diferente na cidade, confirmando o fato de que cada sociedade cria suas anormalidades.


Esta particularidade de Jataí é confirmada no documento o Registro dos Estatutos da Sociedade, o qual é definido conceitualmente quem seria o alvo da instituição: a “mendicância”. A busca pela higienização vai muito além da saúde dos indivíduos, chega ao ponto de retirar das ruas das cidades figuras que “incomodassem” os governantes e a sociedade, visto que são as relações desta que constroem suas zonas de pobreza, e os comportamentos tidos como anormais, visto que estes nascem das relações sociais, no imaginário social.


Analisando desta forma, este documento demonstra que a instituição funciona mais como limpeza social, e da imagem da cidade em si do que um Hospital Psiquiátrico. Neste momento a categoria do louco já envolve os indivíduos que não são “agradáveis” segundo aqueles que querem parecer “cordiais” a novas visitas à cidade ou até mesmo a população dita como normal.

Podemos relacionar esta questão do ambiente das cidades com diversos fatores, mas o principal deles é uma política iniciada na França, que em meados do século XIX, mais precisamente entre 1853 e 1870, Paris passou por uma profunda reforma urbana, influenciada por segundo Foucault:


Nasce o que chamarei medo urbano, medo da cidade, angústia diante da cidade que vai se caracterizar por vários elementos: medo das oficinas e fábricas que estão se construindo, do amontoamento da população, das casas altas demais, da população numerosa demais; medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; medo dos esgotos, das caves sobre as quais são construídas as casas que estão sempre correndo o perigo de desmoronar. (FOUCAULT,1982, p. 50)

Portanto, nasce na França uma preocupação relacionada ao ambiente urbano, à preocupação da circulação de água e até mesmo do ar, os "Cemitério dos Inocentes" que existia no centro de Paris, onde eram jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das pessoas que não eram bastante ricas ou notáveis para merecer ou poder pagar um túmulo individual, tornam-se um dos problemas.


A medicina urbana que surgia se preocupava com tudo que se acumulava e se amontoava, visto que Paris particularmente vivia sob um intenso aumento populacional, era muita gente para pouco espaço.


A circulação do ar era uma grande preocupação, daí decorreu o alargamento das avenidas e a destruição de casas de pessoas que não tinham condições de pagar por terrenos e se amontoavam isto decorreu de uma velha crença que de acordo com a circulação do ar, este tinha grande influência sob o organismo dos indivíduos.


Segundo Foucault esta medicina urbana não é verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma medicina das coisas: ar, água, decomposições, fermentos; uma medicina das condições de vida e do meio de existência. Portanto esta ideia de higienização das cidades, do ambiente, dos bairros é reproduzida aqui no Brasil que se estende para os Sertões que abrange Jataí.


Além desta questão do ambiente da cidade de querer algo “limpo e higienizado” seguindo os moldes europeus, temos a busca pela capitalização deste povo do sertão, tornar seus corpos aptos aos trabalhos, visto que este povo não condizia com o sistema capitalista que estava borbulhando na Europa, e transbordando para o litoral brasileiro. Nas intenções da instituição isto é evidenciado com clareza:


não se descuidará de dar-lhes amparo moral e espiritual, procurando transformar suas vidas, de forma tal que vejam a alegria no trabalho honesto e possam se tornar útil a si, a seus semelhantes e a Pátria. (Registro dos Estatutos da Sociedade de Beneficência Albergue São Vicente de Paulo de Jataí, 01/08/1952)

É preciso ter em mente que a fonte aqui utilizada é fruto de seu tempo, cujas representações estão diretamente relacionadas ao imaginário social de seu contexto. Portanto, é compreensível que represente os interesses, e dê suporte às sensibilidades do seu período, onde perceber o espectro de uma política de modernização, iniciada desde a Proclamação da República.


A normalização do ideal “homem trabalhador”, e sua relação com o Hospital Psiquiátrico, se da ao fato pelo qual o saber médico influencia nas vidas das pessoas, não só em cuidados higiênicos para ter um corpo saudável, mas,


como falar, o que falar, o que pensar, como andar, quando andar, como se portar com os olhos, os gestos. Em suma, uma economia do corpo que não está sustentada apenas na mente, nos delírios que são impalpáveis, mas na querência de localizá-los através do comportamento expresso pelo corpo. (PAULA, 2011, p. 48)

Desta forma a loucura foi usada a fins de controle social, com moldes puramente europeus e eugenistas, visando à mudança de comportamento dos indivíduos em todas as partes da pátria, determinando padrões de comportamentos nos meios sociais. Pode-se estender um pouco mais a discussão, e buscar o cerne desta utilização da medicina, para o molde social.


Já vimos que Foucault já discutira a medicina francesa, que vê o ambiente como forma de proliferação de doenças, perpassadas principalmente pela água e pelo ar, modificando assim muitas cidades, começando por Paris. Porém existem mais dois tipos de medicinas relatadas por ele, as chamadas medicinas sociais, que são encontradas vestígios de todas elas aqui em Jataí.

Primeiramente a medicina Alemã iniciada em meados do século XIII, o qual era ligado ao corpo a favor de um Estado, organizado politicamente e com conflitos externos com os países vizinhos. A Alemanha em preocupação com a saúde de sua população analisa os dados de morbidade, contabilizados por dados pedidos a hospitais, normaliza o saber médico através da padronização do ensino de medicina, dado este poder aos próprios médicos,


Aparece a ideia de uma normalização do ensino médico e, sobretudo, de um controle, pelo Estado, dos programas de ensino e da atribuição dos diplomas. A medicina e o médico são, portanto, o primeiro objeto da normalização. Antes de aplicar a noção de normal ao doente, se começa por aplicá−la ao médico. O médico foi o primeiro indivíduo normalizado na Alemanha. (FOUCAULT, 1982, p.49)

Tanto na Prússia quanto nos Estados Alemães se cria um aparelho do Estado para fiscalizar os médicos, portanto as normas e padrões a se seguir são ditos por este aparelho, que é subordinado ao Estado. Portanto, estas características, segundo Foucault é denominado de Medicina de Estado. A partir disso a medicina irá funcionar aos moldes do Estado,


não tem, de modo algum, por objeto a formação de uma força de trabalho adaptada às necessidades das indústrias que se desenvolviam neste momento. Não é o corpo que trabalha, o corpo do proletário que é assumido por essa administração estatal da saúde, mas o próprio corpo dos indivíduos enquanto constituem globalmente o Estado: é a força, não do trabalho, mas estatal, a força do Estado em seus conflitos, econômicos, certamente, mas igualmente políticos, com seus vizinhos. E essa força estatal que a medicina deve aperfeiçoar e desenvolver. ( FOUCAULT, 1982, p.50)

No Hospital Beneficência São Vicente de Paulo, observamos resquícios desta medicina de Estado, à medida que nos seus objetivos a instituição visa deixar os corpos “úteis a pátria”, gerando, por conseguinte uma influência direta dos governantes no poder médico. Portanto, as medidas de modernização brasileiras vigentes na época, proporcionadas principalmente pela Era Vargas, moldam as ações médicas, visando, por exemplo, o controle social, justificado pelo saber médico.


Modernizar indivíduo por indivíduo, trazer “civilização”, esta era a intenção do Estado naquela época, e que seria viabilizada pelos médicos, trazer a tona a nacionalidade brasileira, porém com moldes puramente europeus. Outro fator iniciado na Europa, mais precisamente na Inglaterra é a terceira forma de medicina social citado por Foucault, que deixará seus lastros no Brasil, podendo encontrar seus vestígios no Hospital psiquiátrico de Jataí.


A medicina dos pobres, da força de trabalho, do operário não foi o primeiro alvo da medicina social, mas o último. Em primeiro lugar o Estado, em seguida a cidade e finalmente os pobres e trabalhadores foram objetos da medicalização. (FOUCAULT, 1982, p.55)

Este modelo médico ligado ao trabalhador é decorrente da intensa industrialização vivida na Inglaterra nos séculos XIII e XIX, este modelo sendo usado principalmente para assegurar o poder político da burguesia da época,


E essencialmente na Lei dos pobres que a medicina inglesa começa a tornar−se social, na medida em que o conjunto dessa legislação comportava um controle médico do pobre. A partir do momento em que o pobre se beneficia do sistema de assistência, deve, por isso mesmo, se submeter a vários controles médicos. Com a Lei dos pobres aparece, de maneira ambígua, algo importante na história da medicina social: a ideia de uma assistência controlada, de uma intervenção médica que é tanto uma maneira de ajudar os mais pobres a satisfazer suas necessidades de saúde, sua pobreza não permitindo que o façam por si mesmos, quanto um controle pelo qual as classes ricas ou seus representantes no governo asseguram a saúde das classes pobres e, por conseguinte, a proteção das classes ricas. Um cordão sanitário autoritário é estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos originários da classe pobre. (FOUCAULT, 1982, p.56)

Portanto, a medicina inglesa assim como a Alemã é ligada ao corpo, porém com objetivos diferentes, enquanto na Alemanha o corpo deveria atender as necessidades do corpo Estatal, na Inglaterra, a medicina deveria moldar o corpo das classes mais baixas para o trabalho:


De maneira geral, pode−se dizer que, diferentemente da medicina urbana francesa e da medicina de Estado da Alemanha do século XVIII, aparece, no século XIX e sobretudo na Inglaterra, uma medicina que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná−las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas. (FOUCAULT, 1982, p.56)

Examinando o documento, esta forma de controle também pode ser encontrada, “transformar suas vidas de forma a ver alegria no trabalho honesto, tornando úteis a si”, é claramente uma politica de molde comportamental, utilizando do Hospital psiquiátrico, como normalizador de comportamentos.


Entretanto, observamos no Hospital de Jataí, lastros destes modelos médicos, todos os três, unidos a partir de uma instituição e a busca de uma civilização almejada pelos governantes brasileiros. O corpo dedicado à pátria e ao sistema capitalista, o ambiente das cidades moldados a partir da ideia de sanitização, excluindo indivíduos que “atrapalham” de certa forma o bem-estar social e a imagem das cidades.

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO


LOBATO, João Vitor Leal. O Louco E O Sertão: A Institucionalização Da Loucura Em Jataí A Partir Do Albergue São Vicente. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.03, mar. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em: <https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/o-louco-e-o-sert%C3%A3o-a-institucionaliza%C3%A7%C3%A3o-da-loucura-em-jata%C3%AD-a-partir-do-albergue-s%C3%A3o-vicente> Acesso em:

 

REFERÊNCIAS


VIANA, Nildo. Memória e Sociedade: uma breve discussão teórica sobre memória social. Espaço Plural (Unioeste), ano VI, n. 14, 2006, p. 8-10.


FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Organização e introdução de Roberto Machado. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982.


FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978.


VIEIRA, Tamara Rangel. Médicos do sertão: pesquisa clínica, patologias regionais e institucionalização da medicina em Goiás (1947-1960) / Tamara Rangel Vieira. – Rio de Janeiro: s.n., 2012.


FONTE, Eliane Maria Monteiro da. Da Institucionalização da loucura à reforma psiquiátrica: as sete vidas da agenda pública em saúde mental no brasil. Estudos de Sociologia - ISSN: 2317-5427, [S.l.], v. 1, n. 18, mar. 2013.


PAULA, Éder Mendes. Os Sons do Silêncio: O louco e a loucura em Goiás. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História, da Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2011.

 

FONTE


REGISTRO DOS ESTATUTOS DA SOCIEDADE DE BENEFICÊNCIA ALBERGUE SÃO VICENTE DE PAULO DE JATAÍ, sob n. de ordem 19, 1952.


Projeto de Lei 342/46 do dia 11/06/46 da Cidade de Anápolis.

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