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O FUTEBOL COMO PROJETO POLÍTICO-IDEOLÓGICO DE VARGAS


 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Ago. 2020 Ano I Nº 008 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por


Marcus Vinícius de Araújo Pereira

 

RESUMO


O presente artigo busca traçar uma discussão acerca da forma como o futebol foi utilizado como meio de propaganda do regime varguista. Assim, buscaremos delinear as linhas gerais da chegada do futebol em solo nacional, suas tensões e suas modificações, como por exemplo, o descolamento de uma elite e se tornando dos trabalhadores mais humildes. Posteriormente será apresentada a forma como Getúlio Vargas tentou se apropriar do esporte, bem como ações que visam que seu projeto não fora assimilado da forma como fora pensado, sofrendo alterações entre as classes altas e baixas da sociedade nacional.

 

INTRODUÇÃO


O futebol no século XXI está cristalizado como o esporte mais popular do Brasil, aquele que consegue gerar sentimentos dos mais diversos em todos aqueles que o acompanham. Tal realidade fica mais escancarada em anos de Copa do Mundo de futebol, organizada pela FIFA – Fédération Internationale de Football Association.. Mas ele, em sua chegada ao país, nada tinha de caráter popular, era voltado para atender uma demanda da elite nacional e se enquadrava em um discurso médico que apontava para a necessidade da prática de atividades físicas. O futebol era um passatempo da elite.


Mas o passar dos anos fez com que as camadas mais pobres do Brasil também praticassem o esporte, que demandava poucos recursos para se praticar – não se tratando aqui de bolas e uniformes oficiais, que eram advindos da Europa, mas de se praticar de forma adaptada com bola de meia, improvisando o campo em um lugar plano, as demarcações das traves mediante a colocação de chinelos ou paralelepípedos. O remo, por exemplo, demandava uma quantidade de recursos infinitamente maior, já que era necessário comprar o barco e todo o seu equipamento de uso, sendo assim restrito as classes privilegiadas.


O decorrer do tempo também trouxe para o seio da discussão futebolística a questão da profissionalização ou não do futebol em terras nacionais, o que modificaria o nervo central no qual o esporte se apoiava, o amadorismo. Era por meio desse amadorismo que a elite buscava mantê-lo como seu, ainda que mestiços, negros e pobres já haviam rompido a barreira que separava os mais ricos da maior parte da população – cabe salientar que o romper dos muros não ocorreu de forma pacífica e harmoniosa, contando com bastante resistência da classe abastada nacional. Ainda assim o recado era notório: o futebol deixava de pertencer somente aos mais ricos e se popularizava cada dia mais.


A abrangência futebolística foi tamanha que ele foi utilizado como sintetizador da identidade brasileira, servindo para o projeto varguista como ancoragem de uma brasilidade que estava sendo construída no pós-30. O futebol fora utilizado também como meio de propaganda ideológica do Estado nacional, uma forma de difundir a imagem que se buscava do regime vigente, uma forma de contato com as massas. O esporte de origem bretã foi enquadrado também na categoria laboral, ganhando o status de profissão, o que muito tem a ver com a lógica do trabalhismo, uma das facetas do governo presidido por Getúlio Vargas.


Cabe a nós, porém, buscar entender até que ponto o projeto nacional que vinha sendo construído ganhava o apoio das massas. E mais do que isso, deixarmos de lado visões simplistas que reduzem a construção de um projeto de nação ao modelo estabelecido de cima, não atentando para as reinterpretações e visões diferentes que se desenvolvem sem o consentimento do ideal criado pelo Estado. Mediante tal perspectiva, a figura do jogador mais conhecido do país naquele momento, Leônidas da Silva, ajuda-nos a compreender esses contrapontos entre a ideologia difundida do alto e como ela foi recebida, compreendida e reinterpretada pelas classes subalternas.


Getúlio Vargas utilizou-se do futebol como meio de propaganda política: mas de que forma? Ele atingiu os resultados esperados? E quanto à aproximação com os jogadores mais famosos e mais queridos: ocorreu de forma como desejava o governo e sua lógica de formação de uma nação de trabalhadores, que deveriam ter determinado padrão de comportamento, serem disciplinados e afeitos ao trabalho? O que a figura de Leônidas da Silva nos contribui nessa discussão? Esses são alguns dos questionamentos que buscamos ser debatidos no presente artigo


Os anos iniciais do esporte no Brasil


A chegada do esporte de origem inglesa ao Brasil é repleta de controvérsias. A versão mais popular do fato é que o futebol chegou ao país por meio do Charles Miller, paulista que havia passado uma temporada na Inglaterra e que em sua volta a São Paulo havia trazido bolas e alguns equipamentos para a prática, em 1894. Outros relatos, porém, atribuem ao escocês Thomas Donohoe a primazia da prática esportiva no país, mas no Rio de Janeiro, mais precisamente da Fábrica de Tecidos de Bangu, onde trabalhava. Dizer qual das duas versões é a verdadeira é difícil de dizer devido à escassez de fontes, mas convencionou-se a ver Charles Miller como o "pai" do futebol no Brasil.


O esporte, m seus anos iniciais, adquiriu um caráter elitista. Assim, era destinado para os membros das classes mais favorecidas, servindo como forma de passatempo para aqueles que o praticavam, com predomínio do amadorismo durante as primeiras décadas. As nomenclaturas utilizadas eram as mesmas que vinham da Europa, sendo comum que os clubes que começavam a ser fundados ganhassem nomes em inglês, bem como as posições eram ditas também na língua inglesa. A pouca mídia que iam ganhando com o passar do tempo falavam em match de futebol, em goal-kepper, half-back-left e center-forward [1]. O árbitro era o referee e os times eram chamados de scratch: o futebol ainda era football.


O aportuguesamento do que se referia ao jogo foi ganhando mais espaço justamente quando o interesse pelo esporte foi se tornando cada dia maior. As partidas começaram a atrair um público que não era somente dos grã-finos, mas sim dos trabalhadores, de pessoas das camadas inferiores da sociedade que achavam interessante a prática. Tão interessante que passaram a praticar também, isso se devendo a facilidade em conseguir reproduzir o jogo. Um terreno, uma bola de meia e pedaços de madeira para marcar os gols já servia para improvisar um "match". Muitas pessoas começaram a reproduzir o que conseguiam ver do futebol, pessoas que não estavam acostumadas a praticar esportes devido à dificuldade de tal. Vide o exemplo do remo, esporte mais popular de então e que atraía multidões para as regatas, mas que demandavam uma condição financeira para adquirir equipamentos e os manter: não era acessível para a maioria esmagadora da população que vivia em condições precárias.


A década de 10 chegava ao fim quando ocorreu o Campeonato Sul- Americano na cidade do Rio de Janeiro. Este atraiu um público imenso no ano de 1919, onde o Brasil sagrou-se campeão contra a forte seleção do Uruguai e emergia assim o primeiro jogador com caráter de herói: Artur Friedrich, o Freid, autor do gol da vitória. O futebol ali mostrava que seu nível de popularidade havia alcançado patamares muito elevados. O Sul-americano não apareceu como sendo o início de sua difusão, mas sim como marco de que esta difusão já vinha acontecendo ao longo das duas décadas do século XX. O futebol já rivaliza fortemente com o remo, com alguns escritores apontando que já ali ele se constituía uma popularidade maior que o esporte aquático. [2]


Clubes passaram também a se formar em fábricas e a incluir os trabalhadores nas equipes. Dessa forma se deu o início do processo de inserção dos mais pobres no jogo. Conforme apresentado por Mario Filho, em O Negro no Futebol brasileiro=, muitos jogadores operários das fábricas passaram a atuar de forma corriqueira nos times, independente se eram mestiços ou negros [3]. Passaram também a ganhar certas regalias no local de trabalho, como um serviço mais leve, a liberação para os treinos da equipe. Outra circunstância que surge nesse interregno temporal entre os anos 20 e os anos 30 é questão de recompensas financeiras para a vitória em jogos. Os famosos bichos, como ficaram conhecidos, eram prêmios dados aos jogadores em caso de vitória de jogos ou de campeonatos, configurando o chamado "profissionalismo marrom". Esse foi um dos pontapés iniciais da discussão da profissionalização do esporte, haja vista que muitos já buscavam viver dessas gratificações recebidas e não pelos salários, que eram muito baixos. Não era difícil de ocorrer casos de exploração dos times para com os jogadores, onde estes eram usados até seu esgotamento e depois descartados sem nenhum tipo de amparo.


Os mestiços e negros, por sua vez, ficavam muito restritos aos clubes de menor expressão no cenário, mas sendo maioria nas equipes suburbanas. Entre elas podemos citar o Bangu Athletic Club, clube da Zona Oeste carioca e que busca para si o "título" de primeira a aceitar negros nos seus quadros de esportistas. Os grandes clubes, no Rio de Janeiro era o caso do Botafogo, do Fluminense, do Flamengo e do América, essa incorporação se deu de menor forma, aceitando-se primeiramente, de forma tímida, os mestiços. Posteriormente se abrindo aos negros, mas em pouca quantidade, a maioria do time ainda era composta de membros da elite.


A vontade de vencer a qualquer custo aumentou a vontade dos clubes em aceitarem negros entre seus jogadores, já que as pressões em caso de derrota eram fortes, e os negros eram vistos como mais habilidosos. Não se queria, porém, negros circulando pela sede do clube, eles estariam manchando a imagem deste. A passagem a seguir ilustra bem como ficava a situação nos clubes ricos e tradicionais: “O mulato e o preto eram, assim, aos olhos dos clubes finos, uma espécie de arma proibida. Não um revólver, uma navalha. Se nenhum clube puxasse a navalha, os outros podiam continuar lutando de florete”. [4]


Mas o ano de 1923 trouxe uma nova perspectiva para o cenário. O Vasco da Gama, equipe considerada pequena por vir do subúrbio carioca, venceu o campeonato daquele ano de forma brilhante. Seus jogadores, quase todos, eram negros, mestiços, estrangeiros, pobres ou imigrantes e nada tinham a ver com os jogadores brancos, com altos cargos e bons salários que eram a cara do futebol dos clubes mais tradicionais. Houve aí uma quebra de paradigma. Foi provado que, ainda que a contragosto, os clubes teriam de aceitar esses novos atores sociais em meio ao jogo. O futebol deixava cada vez mais seu imaginário de lazer e passatempo elitista. Queria-se ganhar, a qualquer custo.


Não devemos, porém, ser ingênuos de acreditar que a entrada dos jogadores negros e pobres nos clubes ocorreu seus problemas e conflitos. Os sócios dos clubes não gostavam de ter um homem que não fosse seu igual perambulando pela sede do clube, indo as festas e jantares. O negro era incluído, mas somente dentro de campo, não queria que ele frequentasse o clube ou mesmo que fosse encarado como igual. Sua função ali era ganhar jogos e campeonatos. O racismo foi prática recorrente, bem como a exclusão e o isolamento vivenciado por esses jogadores. A incorporação não serviu como forma de superação das diferenças, apenas se aceitou a necessidade de negros para vencer. Ponto final.

[...] o futebol não alterava a ordem das coisas. Pelo contrário. Onde se podia encontrar melhor demonstração de que tudo era como devia ser? O branco superior ao preto. Os ídolos do futebol, todos brancos. Quando muito, moreno.

Preto só entrava no escrete uma vez na vida e outra na morte. E quando um branco que devia jogar estava fora, doente ou coisa que o valha. Então o preto podia jogar. [5]

A tentativa de apropriação pelo Estado


O ano de 1930 trouxe consigo o início de uma série de mudanças que se fariam presentes em uma longa duração. A chegada de Getúlio Vargas à presidência da República mediante um golpe após a perda das eleições ocorridas em 30 foi o pontapé inicial de uma “reforma institucional” brasileira, onde a relação do Estado com a massa de trabalhadores foi mais próxima. Dentro de tal lógica, surge o ideal do trabalhismo, conforme analisado por Ângela Gomes [6]. Houve uma busca em atender as demandas dos mais pobres por meio de uma legislação trabalhista, adotando uma postura paternalista que buscava nas massas um fator de legitimação do governo de Vargas – tanto no governo provisório, quanto no eleito por via indireta e no regime ditatorial do Estado Novo.


Mediante esse contexto de se dirigir a população com menor poder econômico e buscar cooptá-la para atender a demanda de legitimidade, os governos de Vargas, sobretudo na ditadura estado-novista, foram marcados por duras repressões aos sindicatos dos trabalhadores, o fechamento do Congresso Nacional e a extinção de partidos políticos [7]. Essa propaganda governista também contou com o papel da imprensa, com a Rádio Nacional sendo um grande difusor de uma valorização do regime, do presidente/ditador Getúlio Vargas em seu projeto disciplinador para o país.


Outra marca importante desse interregno temporal que vai de 1930 a 1945 foi o projeto de construção de uma nação brasileira. Buscou criar-se uma brasilidade, uma ideia de pertencimento ao país e que atravessasse a sociedade de cima a baixo, perpasse as barreiras raciais e econômicas. Foi tentada a organização da cultura popular, uma integração entre elite e classe trabalhadora. Conforme analisado por Priscilla Soares e Anderson Mororó, Vargas buscou a todo custo uma ideia de paz social, uma colaboração entre as classes, também como forma de apaziguamento das disputas existentes na sociedade [8].


O ideal varguista versava sobre a necessidade da criação de um novo cidadão brasileiro, marcado pela disciplina e obediência. A disciplinarização seguiu a lógica de controle dos corpos e criação de um espírito de obediência no brasileiro, conforme evidenciado por Felipe Morelli Machado [9]. Objetivava também uma subordinação política, tentativa de aperfeiçoamento físico e moral a criação de uma nação “pujante e forte” através da educação física e moral. Aqui se insere os esportes em geral e o futebol em particular: como forma de disciplinarização daqueles que o praticassem para se enquadrar na proposta estatal de obediência, corroborada por autores como Fernando Azevedo e João Lyra Filho que acreditavam na capacidade esportiva de formação do povo brasileiro.


O futebol, na década de 1930, já contava com uma popularidade muito alta e já havia superado o remo como esporte que mais mexia com as emoções das pessoas. Dessa forma, Getúlio Vargas e os componentes de seu governo buscaram utilizar-se do futebol como instrumento de propaganda e também como forma de controle ideológico, buscando usar os esportes como meio de valorização do estado nacional, ideia de inspiração nazifascista e que foi buscando ser adaptada à realidade nacional. [10]


Assim, o futebol foi ganhando a atenção cada vez maior do Getúlio, que tentou buscar formas de enquadrá-lo aos moldes pretendidos. Assim, para além das motivações relacionadas à fuga de brasileiros para outros países, a profissionalização para a categoria de jogador de futebol iniciada no ano de 1933 busca enquadrar o jogador no quadro do trabalhismo varguista e, para além disso, também buscando disciplinar fisicamente aqueles trabalhadores e, por consequência, a nação brasileira, sendo deixando de lado o fato de certa melhoria na qualidade de vida desses, agora atletas, ainda que de forma diminuta

Se o futebol já era popular e mobilizador, a partir dos anos 30, passa a ser utilizado de modo sistemático pelos governantes como forma rápida de atingir “as massas”. É, sem dúvida, uma apropriação ideológica condenável, mas isso não quer dizer que seja esta sua única dimensão sócio-política, ao contrario: ainda que não se bastasse por si só, o futebol continuou (e continua) a ser uma forma de setores excluídos da nossa sociedade conquistarem o acesso a bens e a direitos que lhes são comumente vedados – dos quais o primeiro talvez seja o direito a se sentirem brasileiros. [11]

Em um contexto em que ideias como a da “democracia racial” ganhavam força em solo nacional, houve a tentativa de desenvolver uma democracia social no Estado, onde negros, brancos, mestiços, ricos e pobres se sentissem membros de uma nação, compartilhando de um mesmo ideal, com algo que os ligasse. O futebol tentou cimentar essa relação entre classes e raças, sobretudo com a Copa de 1938, momento em que Vargas se debruça de forma mais veemente sobre a temática futebolística: o escrete brasileiro seria a representação do Brasil na competição a ser disputada na França. Mostraria ao mundo o sucesso do “mito das três raças”, onde o branco europeu, o negro africano e o índio americano haviam formado um país que juntava o melhor das três raças e seria por assim ímpar e único. A fala de Gilberto Freyre corrobora essa visão de exaltação dessa formação miscigenada brasileira:

[...] uma das condições dos nossos triunfos, este ano, me parecia a coragem, que afinal tivemos completa, de mandar a Europa um team fortemente afro-brasileiro. Brancos, alguns, é certo; mas grande número, pretalhões bem brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros. [...] O novo estilo de jogar foot-ball me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política. [...] Acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de foot-ball; e esse estilo é mais uma expressão do nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas ou em músicas técnicas europeias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto. [...] O mulato brasileiro deseuropeisou o foot-ball dando-lhe curvas. [...] O estilo mulato, afro-brasileiro, de foot-ball é uma forma de dança dionisíaca.[12]

Essa Copa ganha ainda mais contornos de um verdadeiro representante nacional porque foi a primeira Copa que congregou cariocas e paulistas em um mesmo time, já que na Copa anterior, em meio a disputas entre São Paulo e Rio de Janeiro, somente cariocas representaram o Brasil em 1934 [13] – ai se apresenta, novamente, o ideal nacional de superação das disputadas regionais e a geração de um sentimento unificador. Tal Campeonato do mundo, realizado na Itália e ainda no formato eliminatório contou com apenas um jogo da seleção brasileira, derrotada logo na estreia pela Espanha por 3 x 1. O gol brasileiro fora marcado por Leônidas da Silva, um personagem ímpar na história futebolística nacional.


Leônidas da Silva: cooptado pelo Estado?


Leônidas da Silva foi um jogador brasileiro de grande fama e popularidade entre os anos 1930 e 1940. Era negro, assim estava inserido em todo um contexto de racismo entre os clubes de futebol da época. Foi o grande nome brasileiro antes de Pelé, sendo imortalizado por sua forca física, seu faro de gol e com a jogada que foi imortalizada por ele: a bicicleta. Surgindo no pequeno clube Sírio Libanês, logo se transferiu para o Bonsucesso, clube do subúrbio do Rio de Janeiro no qual ganhou fama após a Copa Rio Branco disputada no Uruguai, o que lhe rendeu um contrato com o futebol daquele país, com a equipe do Peñarol. Ele ainda passou por Vasco e Botafogo, mas os times onde ele mais se destacou foram Flamengo e São Paulo.


O regime ditatorial do Estado-Novo, iniciado em 1937, aprofundou a aproximação de Getúlio Vargas com o futebol. O grande marco dessa maior relação foi a já citada Copa de 1938, momento que o discurso oficial tentou utilizar o selecionado brasileiro como o símbolo de uma brasilidade em construção, uma vez que eram vistos brancos, negros, mestiços na equipe. Desse modo também buscou a valorização do “Novo Brasil” que vinha se desenvolvendo, um país ordeiro e que tinha valores a obediência e a presteza, como se o brasileiro da malandragem fosse se tornando, em um processo evolutivo, o trabalhador que é pontual e executa seu trabalho na fábrica.


A construção simbólica de uma brasilidade e de um orgulho nacional ganhavam potência. Assim, também se queria mostrar para as demais nações que o Brasil deixara de ser um país atrasado, indisciplinado, que estava entrando nos rumos modernos. A imagem da seleção de 1938 tinha também essa significância. Buscava construir uma boa imagem do país no estrangeiro, onde o projeto político-ideológico varguista de ordem, disciplina e civilidade [14] virasse a maneira de ver o país, que era ainda relativamente pouco conhecido em âmbitos mundiais.


Conforme questionado por Felipe Morelli Machado, a maior parte da historiografia incorpora a ideia de que Vargas conseguiu se fez valer da força do futebol em seu projeto político, que a construção da identidade se deu de cima para baixo sem se atentar para como foi a recepção, as reinterpretações e respostas sociais para essas ações governamentais [15]. Torna a grande massa de trabalhadores e até mesmo de jogadores como cooptáveis de forma fácil e que nenhum tipo de contraponto ou modificação aconteceu entre a idealização no alto escalão do governo e a chegada aos populares: a massa ganha contornos amorfos.


O próprio Felipe Morelli Machado questiona essa perspectiva, bem como autores como Florenzano, que atenta à necessidade de enxergarmos a rebeldia como meio de luta e oposição a tentativa de controle estatal do jogo. [16] Tal tentativa não busca romper com os estudos das ações governamentais, mas sim servir de apoio na visão do cenário, oferecendo um contraponto para as análises. E a figura de Leônidas pode muito bem ser encarada como um dissidente do ideário varguista: o jogador mais popular da época não se engendrava na lógica do trabalhador disciplinado e passivo.


Leônidas possuía um gênio forte, uma personalidade explosiva [17]. Ele bebia, constantemente chegava atrasado e também fugia de treinamentos, brigava com repórteres, era presença constante nas gafieiras, chegando até acusado de roubo em uma das excursões que fazia com seu clube da época e preso por falsificação da carteira de reservista – ficou 8 meses preso, mas fotos de época mostram as regalias conseguidas como, por exemplo, as saídas pela noite carioca. Ele era o que podemos chamar de jogador problema, sempre envolvido em confusões dentro e fora de campo, pelo menos essa era a imagem retratada deste nos jornais da época – talvez seja fruto do racismo, cabendo estudos nessa direção.


Segundo Melina Pardini em A narrativa da Ordem e a Voz da Multidão: Futebol na Imprensa durante o Estado-Novo, Leônidas possuía um estilo libertário de se jogar futebol: ele era negro, malandro e individualista [18]. Dessa forma, ele em nada seguiria o padrão e os valores do Estado-Novo, pautados na superioridade branca, na disciplina e na coletividade. A imagem de dele parecia retratar uma postura que não concordava com os ideais planejados pelo Estado nacional.


Entre os jogadores da época, os mais populares eram Leônidas e Domingos da Guia, ambos negros, vindo das classes mais baixas, mas com personalidades completamente diferentes. Domingos, o zagueiro marcado pela técnica e que dividiu os vestiários da Gávea com Leônidas, era muito similar ao enquadrado pelo regime: humilde, discreto, educado, saída do jogo para ficar com sua família. Já o atacante não, teve a vida cercada de confusões, conversava com todos depois dos jogos, era constantemente visto pelo Centro do Rio de Janeiro: surgia como uma resistência ao regime.


Justamente essa perspectiva levantada por Denaldo Alchorne de Souza, autor do livro O Brasil entra em campo! Construções e Reconstruções da identidade nacional. Em entrevista ao site Nova Escola [19], o autor assinala a ideia de que Vargas buscou associar sua imagem à de Leônidas, a do homem ideal, mas não atingiu seu objetivo. Suas constantes confusões, como a confusão que culminou com sua prisão mediante a acusação de falsificação do certificado de reservista e o episódio de um suposto roubo, minaram a tentativa de Getúlio. Questiona se o “diamante negro” havia resistido ao governo, Denaldo foi categórico em sua resposta:

Sim, pois Leônidas simbolizava as pessoas que resistiram ao regime. Justamente o jogador mais popular foi o oposto da ideologia levantada pelo Estado Novo. Essa popularidade mostra que a identidade nacional não é criada só de cima para baixo. O Estado queria uma nação ordeira e disciplinada, mas a população se identificava com outros valores, ligados ao prazer e à diversão, que Leônidas personificava. Ele era visto como um homem do povo, alguém que tinha sido maltratado pela vida, mas que gostava de aproveitá-la mesmo assim.[20]

A população mais carente do Brasil não servia como mera massa de manobra do Governo Vargas. Ela tinha anseios, buscava atender suas necessidades e não devem ser encaradas como passivas as exigências e imposições estatais, sabendo-os também “jogar o jogo” do momento histórico vivido. Sabendo da tentativa de buscar junto a eles uma legitimidade para as ações tomadas, a população brasileira soube de adequar e também modificar o discurso vindo de cima e Leônidas surge como membro dessa classe descontente e que não era amorfa: os discursos nunca são um bloco monolítico que vem de cima e se cristaliza entre as massas.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Tal artigo buscou debater a problemática de utilização do futebol como meio de propaganda do regime varguista, seja no período democrático ou no período ditatorial. Enquanto a bibliografia mais tradicional aponta para uma submissão das camadas populares e somente uma aceitação do projeto estatal, é possível enxergarmos que desdobramentos e adaptações permearam a forma como esse ideário chegava e era executado pela população. Assim, figuras como Leônidas da Silva, muitas vezes encarado como um dos jogadores que serviu como meio da aproximação de Vargas com os mais pobres, adquire aqui um caráter anti-sistêmico, indo de encontro aos moldes que tentavam enquadrar ele e o esporte no qual ele praticava.

 

COMO CITAR ESSE ARTIGO


PEREIRA, Marcus Vinícius de Araújo. O Futebol como Projeto Político-Ideológico de Vargas. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.08, ago. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em: https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/o-futebol-como-projeto-pol%C3%ADtico-ideol%C3%B3gico-de-vargas . Acesso em:

 

REFERÊNCIAS


DRUMOND, Maurício. Estado Novo e Esporte: uma análise comparada dos usos políticos dos esportes nos regimes de Getúlio Vargas e Oliveira Salazar (1930-1945)


FILHO, Mário Leite Rodrigues. O negro no futebol brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003

FREYRE, Gilberto. Foot-ball mulato. Diário de Pernambuco, Recife, 18 jun. 1938


GOMES, Ângela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Vértice, 1988.


GOMES, Eduardo de Souza. Respeitável público: espetacularização e popularização do futebol profissional no Rio de Janeiro (1933-1941). FuLiA / UFMG, vol. 1, n. 1, set.-dez., 2016


MACHADO, Felipe Morelli. Rebeldia ou resistência? Leônidas da Silva o ‘Diamante negro’ e o ‘Triunfo’ do futebol brasileiro na Copa do Mundo de 1938. Projeto História, São Paulo, n.38, p. 313-324, jun. 2009


MORORÓ, Anderson de Carvalho. SOARES,Priscila Gonçalves. O pior cego é aquele que só vê a bola. Relação entre Estado e futebol no 1º Governo Vargas. Efdeportes.com - Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 133 - Junio de 2009. Disponível em: <http://www.efdeportes.com/efd133/relacao-entre-estado-e-futebol-no-governo-vargas.htm> Acesso em 13 dez de 2018


NOVA ESCOLA Futebol, resistência e política na era vargas . Disponível em: < https://novaescola.org.br/conteudo/2156/futebol-resistencia-e-politica-na-era-vargas >. Acesso em: 13 dez. 2018


PARDINI, Melina Nóbrega Miranda. A narrativa da Ordem e a Voz da Multidão: Futebol na Imprensa durante o Estado-Novo


PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000


SOUZA, Denaldo Alchorne de. O Brasil entra em campo!: construções e reconstruções da identidade nacional (1930-1947). São Paulo: Annablume, 2008.

 

[1] RODRIGUES FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.


[2] FILHO, Mário Leite Rodrigues. O negro no futebol brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.


[3] Ibidem.


[4] FILHO, Mário Leite Rodrigues. O negro no futebol brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p.120.

[5] FILHO, Mário Leite Rodrigues. O negro no futebol brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p.53.

[6] GOMES, Ângela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Vértice, 1988.

[7] MACHADO, Felipe Morelli. Rebeldia ou resistência? Leônidas da Silva o ‘Diamante negro’ e o ‘Triunfo’ do futebol brasileiro na Copa do Mundo de 1938. Projeto História, São Paulo, n.38, p. 313.

[8] MORORÓ, Anderson de Carvalho. SOARES, Priscila Gonçalves. O pior cego é aquele que só vê a bola. Relação entre Estado e futebol no 1º Governo Vargas. Efdeportes.com - Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 133 - Junio de 2009.

[9] MACHADO, Felipe Morelli. Rebeldia ou resistência? Leônidas da Silva o ‘Diamante negro’ e o ‘Triunfo’ do futebol brasileiro na Copa do Mundo de 1938. Projeto História, São Paulo, n.38, p. 315.

[10] Ibidem.

[11] FRANZINI, Fábio. Corações na ponta da chuteira. São Paulo. DP&A, p. 51-2.

[12] FREYRE, Gilberto. Foot-ball mulato. Diário de Pernambuco, Recife, 18 jun. 1938.

[13]GOMES, Eduardo de Souza. Respeitável público: espetacularização e popularização do futebol profissional no Rio de Janeiro (1933-1941) p. 103.

[14] MACHADO, Felipe Morelli. Rebeldia ou resistência? Leônidas da Silva o ‘Diamante negro’ e o ‘Triunfo’ do futebol brasileiro na Copa do Mundo de 1938. Projeto História, São Paulo, n.38, p. 313.

[15] Ibidem.

[16] IN.MACHADO, Felipe Morelli. Rebeldia ou resistência? Leônidas da Silva o ‘Diamante negro’ e o ‘Triunfo’ do futebol brasileiro na Copa do Mundo de 1938. Projeto História, São Paulo, n.38, p. 314.

[17] Chegando a ser preso colocado em uma clínica devido a agressão a esposa, Dona Albertina.

[18] PARDINI, Melina Nóbrega Miranda. A narrativa da Ordem e a Voz da Multidão: Futebol na Imprensa durante o Estado-Novo.

[19] NOVA ESCOLA Futebol, resistência e política na era vargas . Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/2156/futebol-resistencia-e-politica-na-era-vargas>. Acesso em: 13 dez. 2018.

[20] Ibidem.

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