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HISTORICIDADE E FICÇÃO: UMA ANÁLISE DA DIMENSÃO TEMPORAL NA LITERATURA DISTÓPICA JUVENIL


 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Nov. 2020 Ano I Nº 011 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por Natália Alves de Almeida

[1] Graduanda em História pela Universidade Federal de Jataí, Estado de Goiás, natyalves928@gmail.com.

 

RESUMO


Neste texto, analisamos como a narrativa distópica, veiculada pela literatura juvenil pode ser utilizada como instrumento para pensar noções de temporalidades fundamentais para a teoria da história. Para sustentar essa reflexão, dialogamos com autores diversos: os historiadores e críticos literários Marisa Lajolo e Luiz Costa Lima, que nos possibilitaram apreender as especificidades da literatura enquanto objeto e fonte para estudo da história; os teóricos da história Reinhart Koselleck, François Hartog e Adauto Novaes, que nos apresentam importantes ferramentas conceituais para compreender as diferentes temporalidades manifestas na modernidade e pós-modernidade; e o historiador Gregory Claeys (2013), que nos permite conhecer as características próprias das narrativas utópicas e distópicas em perspectiva histórica. A partir do diálogo com esses autores, realizamos o contato com uma coleção de literatura distópica bastante conhecida do público jovem no Brasil: Divergente (2012), de autoria da escritora americana Verônica Roth. Com esse estudo, esperamos contribuir com ferramentas para a exploração das noções de temporalidades importantes para pensarmos as formas atuais da nossa experiência temporal.

Palavras-chave: Literatura distópica. Historicidade. Temporalidades Históricas.

 

INTRODUÇÃO: A NARRATIVA DISTÓPICA ENTRE HISTÓRIA E A LITERATURA


Ao longo do século XX começou a surgir uma grande quantidade de distopias literárias, sendo que muitas delas foram adaptadas para o cinema, como Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451 e Laranja Mecânica, entre as tidas como clássicas, e Jogos Vorazes, Divergente e Maze Runner, entre as consideradas juvenis. Mais recentemente o romance distópico O Conto da Aia também ganhou uma adaptação para a Televisão, tornando-se uma série de grande sucesso, e por estar disponível em streamings atinge um número de pessoas cada vez maior, fazendo circular a forma narrativa distópica.

O desenvolvimento desse tipo de literatura guarda íntimas relações com grandes eventos e transformações que marcaram o século XX, como as duas guerras mundiais, o desenvolvimento de regimes totalitários e a queda do Muro de Berlim. Estes acontecimentos foram capazes de mudar percepções que antes se possuía sobre a ideia de progresso da humanidade. O futuro, que desde o século XVIII era visto como a dimensão temporal da história associada ao otimismo, passou a ser temido e relacionado cada vez mais com o pessimismo. A literatura distópica, assim como os filmes por ela inspirados, captou a crítica à temporalidade moderna calcada na noção de progresso e formulou sátiras do futuro próximo baseadas em projeções pessimistas.

Além disso, é nossa intenção, refletir sobre o caráter documental que a literatura adquire para a história, que se forem analisadas corretamente, se mostrarão como uma fonte poderosa para a construção da história.

Fundamentos teóricos e metodológicos: o trabalho com a literatura e as noções de temporalidades históricas

O conceito de literatura pode possuir vários sentidos dependendo dos contextos de tempo e espaços. Nesta pesquisa, para compreender essa dimensão flexível da conceituação da literatura dialogamos, entre outras, com Marisa Lajolo, que nos apresenta em sua obra uma percepção básica e esclarecedora do que é a literatura. A autora defende que literatura não é somente composta por obras dos “grandes autores” que são lidos nas escolas e universidades ou que estão nas estantes. Em uma compreensão abrangente, ela considera que “literatura é aquilo que cada um de nós considera como literatura” (LAJOLO, 1984, p 10). Nesse sentido, podemos dizer que a literatura é uma prática social, e como tal, para ser compreendida, precisa ser conectada ao contexto no qual foi produzida, posta em circulação e apropriada pelos sujeitos históricos ao longo do tempo. Pois é a partir desse circuito que vemos emergir o sentido e o valor que a literatura pode expressar historicamente.

Sobre o uso da literatura como documento histórico, Luiz Costa Lima (2007) diz que a presença humana pode transformar qualquer coisa em documento para análises históricas. Chamar algo de documento implica que este pode comprovar que algo é “real”. Porém, a literatura não se apresenta como documento histórico a priori e seu uso como fonte histórica requer um certo cuidado, já que a literatura, sobretudo, a ficcional, possui uma liberdade de criação que os historiadores não podem fazer uso. Ela se mostra um instrumento poderoso para a construção da história, pois mesmo que na sua construção, ela não possua a mesma metodologia que é usada para escrita da história ela ainda continua inserida em um meio, e em seu conteúdo está presente os resquícios do contexto em que ela foi escrita. Aurora F. Bernardini, em seu artigo Literatura e Estudos Culturais mostra como a obra literária foi inserida no âmbito da cultura, ao dizer que “a obra de arte literária é construída a partir de fragmentos de realidade” (BERNARDINI, 2017, p. 105).

Para compreender e operar como as noções de temporalidade que emergem das distopias literárias juvenis, dialogamos com diferentes autores do campo da teoria da história, como o historiador alemão Reinhart Koselleck (2006 e 2014), que nos presenteia com escritos que debatem noções de temporalidade como regimes de historicidade, espaço de experiência e horizonte de expectativas, bem como historiciza o processo de temporalização das utopias ao longo da modernidade, fazendo-nos compreender os textos identificados com o gênero utópico como prognósticos de tempo próprios da modernidade historicista. O historiador francês François Hartog (2015), ao dar continuidade a aspectos do pensamento de Koselleck, reflete sobre os regimes de historicidade antigo e moderno, identificando como eles mudaram a partir dos acontecimentos da segunda guerra mundial, originando o regime de historicidade presentista. A partir do conceito de presentismo, o autor nos coloca diante de uma temporalidade homogênea, que se sobrepõe às dimensões de passado e futuro e que mais caracterizaria a nossa atual experiência temporal. Resulta desse argumento que a dimensão do futuro aparece cada vez mais como algo a se temer, similar aos futuros distópicos dos textos literários que analisamos em nossa pesquisa. Já o teórico brasileiro Adauto Novaes (2013), ao dialogar com Hartog (além de outros autores), problematiza a noção de futuro, numa perspectiva histórica, dizendo que as estruturas sólidas que antes tínhamos para pensar o futuro, agora não existem mais, e o futuro que antes era esperado e desejado, porque entendido pela chave do progresso, agora já não é mais pensado com tanto otimismo. No bojo de suas reflexões, encontramos vários aspectos que nos permitem melhor compreender os horizontes de expectativas distópicos traçados nos romances examinados nesta pesquisa, mas que também caracterizam em larga medida a experiência temporal da atualidade.

Distopia juvenil e temporalidades históricas

A saga distópica aqui analisada, Divergente, é narrada basicamente por dois personagens principais: Beatriz Prior (Tris) e Quatro (Tobias Eaton), sendo narradores-observadores que contam a história a partir de seus pontos de vista, sendo que no começo de cada capítulo, é colocado qual dos dois jovens será o narrador. Eles são dois dos personagens principais que compõem o enredo, juntos com: Janine Matthews (Chefe da Erudição), Caleb (irmão de Tris), Marcus Eaton (pai de Tobias), Andrew Prior e Natalie Prior (Pais de Caleb e Tris, Andrew era membro do conselho da cidade), David (Chefe do departamento genético, personagem além dos muros), Cristina (Amiga de Tris) e Natalie Prior (Ancestral de Tris).

Ao longo da narrativa se descobre que muitos desses personagens escondem segredos sobre a história da cidade e sobre os “divergentes”, segredos esses que mudam o caminhar dos personagens. A saga se passa em um futuro onde a sociedade é dividida por facções para supostamente manter a paz. Nesse contexto, parte dos personagens são isolados do restante do mundo, embora no começo da história não saibam o que está além dos muros que cercam sua cidade. A cidade em que eles vivem é Chicago, o isolamento da cidade do restante do mundo fazem parte de um experimento pensado após a humanidade passar por uma guerra que destruiu a paz. No decorrer da narrativa aparecem explicações sobre o real motivo pelo qual o experimento foi necessário, ao mesmo tempo em que os personagens centrais ganham protagonismo no romance.

No decorrer da narrativa seguimos os personagens na busca pela verdade sobre o que está além dos muros e o porquê dos divergentes serem considerados ameaça à paz. Descobre-se que em um passado distante, embora o mundo vivesse em paz, a humanidade tinha atribuído a culpa das catástrofes do mundo às caraterísticas da natureza humana, então, com a ajuda da genética, decidiram que podiam isolar nos seres humanos genes considerados ruins, como o assassino, o da desonestidade, da falta de inteligência, da covardia. Se prestarmos atenção nesse ponto, percebemos as relações dessas características com as facções entre as quais estão divididos os personagens: medo, egoísmo, falta de inteligência, desonestidade e agressividade, que são tidas como características ruins que as facções tentam corrigir. Mas o experimento ao invés de tornar os genes mais puros, os deixou danificados, pois ao isolar, por exemplo o gene do egoísmo, era retirado o senso de autopreservação, ao se retirar a agressividade, perdia-se a vontade de se impor etc. A personagem Tris pensa a respeito disso e diz:

Listo cada uma das qualidades na minha cabeça conforme ele as menciona: medo, falta de inteligência, desonestidade, agressividade, egoísmo. Ele está mesmo falando sobre as facções. E tem razão em afirmar que cada facção perde ao ganhar uma virtude: A Audácia, corajosa, mas cruel; a Erudição, inteligente, mas vaidosa; a Amizade, pacifica, mas passiva; a Franqueza, honesta, mas insensível; a Abnegação, altruísta, mas sufocante (ROTH, 2014, p. 129).

Como resultado da experiência começou a existir a dominação de geneticamente puros e os geneticamente modificados, no qual os danificados entraram em guerra contra o governo e os puros, a guerra foi chamada de Guerra da Pureza, e após a guerra acabar, eles tomaram a atitude de criar as cidades para resolver o problema dos genes. São esses principais personagens e essas informações que embasam a narrativa e nos levam a perceber as temporalidades históricas aqui discutidas. Assim, os romances analisados, enquanto criação fictícia, mostram-se poderosos para a nossa reflexão, pois contêm os elementos propostos pela pesquisa: o temor ao passado, o medo em relação ao futuro e o controle pelos regimes totalitários.

As distopias literárias normalmente contêm em suas narrativas um futuro imaginado como ruim e defeituoso. O mundo distópico em geral é controlado por regimes totalmente totalitários ou grandes corporações que exercem controle sobre a sociedade. Esses mundos são formados quando algo de muito errado aconteceu no passado, gerando as mazelas descritas no enredo, e para que essa sociedade possa conseguir novamente a paz que fora perdida, medidas de controle são tomadas. É assim que se justificam, em boa parte das distopias, os diversos arbítrios e eliminação dos direitos básicos do indivíduo em nome, supostamente, do bem coletivo.

Existe uma explicação histórica para que as distopias tenham aparecido em massa desde a primeira metade do século XX. Com as catástrofes que aconteceram nesse período, houve uma mudança na percepção que se tinha sobre o futuro. O mal-estar gerado pelas guerras mundiais; as contestações públicas de 1968; o avanço da sociedade de consumo; o esmaecimento das identidades nacionais; o fortalecimento da globalização enquanto processo de “compressão do espaço-tempo”; e “a queda do muro de Berlim, em 1989” (HARTOG, 2015, p. 148) consolidaram a crítica do projeto moderno de sociedade.


O “moderno regime de historicidade”, pautado em uma visão positiva do futuro e associado à ideia de progresso, mudou. A sociedade moderna passou a ser percebida como em vias de colapsar. Regime de historicidade, conforme François Hartog apresenta, é a forma “como uma sociedade trata seu passado” e serve para “designar a modalidade de consciência de si de uma comunidade humana” em relação à passagem do tempo (HARTOG, 2015, p. 28). Conforme isso mudou, a certeza da humanidade no futuro como melhoramento do presente foi abalada e passou-se a temer o que está por vir. O futuro, espaço do desconhecido, difere do passado e do presente porque não encontramos nele estruturas sólidas para caminharmos. Em decorrência disso, deixamos de depositar nele esperança de dias melhores. Nessa conjuntura, Hartog apresenta o conceito de presentismo. Para ele, a dimensão do presente passou a se sobrepor às dimensões do passado e do futuro. Isso caracterizaria o regime presentista de historicidade e a formação da ordem presentista do tempo no decorrer do século XX, que “se, em primeiro lugar ele foi mais futurista do que presentista, terminou mais presentista do que futurista”. Assim, no presentismo têm-se:

Um passado que não está abolido nem esquecido, mas um passado do qual nós não podemos tirar quase nada que nos oriente no presente e nos possibilite imaginar o futuro. De outro lado, um futuro de que não fazemos a menor ideia (HARTOG, 2015, p 20).

Em Divergente, distopia juvenil que circula em grande quantidade no Brasil, e que também foi adaptada para o cinema, apresenta de forma clara esse passado no qual algo deu errado, Veronica Roth escreve, dando voz ao personagem David, quando ele explica para os demais personagens como o experimento do isolamento das cidades surgiram:

Há décadas, nossos antepassados perceberam que a culpa por um mundo em guerra não poderia ser atribuída à ideologia política, à crença religiosa, à raça ou ao nacionalismo. Eles concluíram, no entanto, que a culpa estava na personalidade humana, na inclinação humana para o mal. Dividiram – se em facções que procuravam erradicar essas qualidades que acreditavam ser responsáveis pela desordem no mundo (ROTH, 2012, p.48).

Diferente dos argumentos usados por Koselleck e Hartog, de que os prognósticos ruins de certa sociedade se devem ao fato de regimes totalitários e catástrofes causados por seres humanos, na narrativa construída por Roth são as características humanas que levaram a humanidade à desordem. A sociedade imaginada pela ficção de Roth foi concebida, no imaginário dos personagens, para reparar “erros” humanos que eles acreditavam ser o que fazia o mundo entrar em guerra. No entanto foi a própria humanidade, na esperança de acabar com os genes que eles acreditavam ser o que a humanidade tinha de ruim, que fez com aquela sociedade fosse criada. Observando que as distopias em geral fazem uma previsão para o futuro, é perceptível como esses diagnósticos são possíveis, baseados já em experiências passadas, mostrando que a história pode se repetir, se nos acontecimentos contiver fragmentos daqueles que já aconteceram. Sobre esse assunto o historiador Reinhart Koselleck registra:

Mas, em todos os casos, o prognóstico extrai sua evidência de experiências já feitas, processadas cientificamente e cuja projeção sobre o futuro representa uma arte de combinação de múltiplos dados de experiência” (KOSELLEC, 2014, p 192).

Isso evidencia que quanto mais as previsões se orientarem por experiências ocorridas, mais terão chance de acontecer, e, além disso, temos que:

Em termos mais exatos: previsões só são possíveis porque na história existem estruturas formais que se repetem, mesmo quando seu conteúdo é singular e preserva um caráter surpreendente para os envolvidos. Sem as constantes, de duração variada, presentes nos eventos vindouros seria impossível prognosticar qualquer coisa (KOSELLECK, 2014, p 193).

Já vimos que na história há mais ou menos chance de alguma previsão ocorrer, devido a eventos que passaram, no entanto, por que hoje, como evidenciam as várias distopias literárias, os prognósticos realizados são em geral tão ruins? Antes do século XX os seres humanos concebiam o futuro no ideal de progresso e desejável, mas isso mudou após todas as transformações mencionadas. Adauto Novaes escreve, em seu texto “Mundos Possíveis” que faz parte da coletânea O futuro não é mais o que era, que não sabemos mais pensar no futuro com confiança, pois "perdemos nossos meios tradicionais de pensar e prever" (NOVAES, 2013, p. 11). Para Novaes, as transformações oferecem ao espírito enigmas que ele não consegue resolver (e aqui o espírito são as artes, os costumes e os valores) e a aceleração da história e as evoluções tecnológicas modificam em pouco tempo os costumes, as mentalidades, a política a ética e a vida social.

Ao seguir esse argumento, constatamos que as distopias captam esse pessimismo difuso da sociedade e apresenta, pela fabulação, prognósticos de tempo, que, simultaneamente podem ser vistos como signo da ansiedade com que a nossa sociedade lida com o porvir, mas também como sinal de alerta: uma forma de chamar atenção para o que pode ser nosso futuro próximo, se insistirmos em não corrigir os grandes problemas e valores que estruturam a sociedade moderna, conforme foi estruturada pelo sistema capitalista.

Essa mudança da percepção de futuro também ocorre porque após a primeira guerra mundial as civilizações se dão conta de que são mortais:

Ao escrever sobre o futuro, o poeta Paul Valéry expressava um sentimento partilhado por muitos pensadores de sua época: a célebre frase "nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais" prenuncia e enuncia início do fim da civilização ocidental (civilização europeia), escrita logo após a Primeira Guerra Mundial, época de grandes invenções - aviões, armas químicas etc. Foi preciso muita ciência, escreve Valéry, para matar tantos homens e arrasar tantas cidades em tão pouco tempo, transformar as mentalidades, alterar a política e a ética (NOVAES, 2013, p 14).

Pelo fato de a ciência provocar tantas transformações irreversíveis, em muitas distopias as tecnologias são as armas que os regimes totalitários usam para controlar a população, na saga Divergente há sempre o uso dos avanços tecnológicos. E interessante é que foi essa sede incontrolada por avanços tecnológicos na ciência genética que levou a sociedade que está além dos muros entrar em guerra.

Vittorio Talone, ao analisar a obra Dystopia: a natural history, de Gregory Claeys, registra que o termo distopia significa um lugar ruim, desfavorável, defeituoso. Aponta também que situações que ocorrem em nosso tempo podem ter sido previsões ruins feitas no passado.

O Brasil está na décima posição no ranking mundial quanto à taxa de homicídios, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), os quais atingem sobretudo homens jovens negros – um morto a cada 23 minutos. Donald Trump, empresário norte-americano e presidente da maior potência bélica mundial, provocou um dos maiores riscos de guerra nuclear das últimas décadas por “trocas de farpas” com o ditador Kim Jong-un, da Coreia do Norte. Anos de guerra na Síria, com participação de diferentes países, contra o grupo terrorista Estado Islâmico, cuja atuação provocou milhares de mortes, geraram uma conjuntura de calamidade no país – em seis anos de conflito, o número de refugiados sírios supera os 5 milhões (TALONE, 2018, p 2).

Ao longo de sua análise Talone nos mostra como as distopias foram por muito tempo a realidade de várias sociedades, em que primeiramente ela se caracterizava como o medo de deuses e monstros, mas que passaram a apresentarem-se como totalitarismos e tecnologias opressivas. E, para ele, a distopia literária consegue captar essas questões:

As distopias literárias normalmente são futuros imaginários em que alguma coisa deu muito errado na sociedade, retratando rebeliões por indivíduos e grupos contra o coletivismo e simbolizando valores com os quais o leitor deve simpatizar (TALONE, 2018, p 8).

Em Divergente é exatamente isso que acontece. Darwin, em seu tempo, sugeriu que a ciência evoluiria a tal ponto que ela controlaria a evolução humana, passando a dominar as espécies. Ideia também presente na distopia Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, na saga de Verônica Roth, é a evolução dessa ciência genética que causa entre a humanidade a guerra, fazendo com que seja necessário criar uma sociedade distante do resto mundo. David, personagem que esteve além dos muros diz:

Há alguns séculos, o governo deste país se interessou em incutir certos comportamentos desejáveis em seus cidadãos. Estudos haviam indicado que tendências violentas poderiam ser explicadas em parte pelos genes de uma pessoa. Um gene denominado “assassino” foi o primeiro deles, mas houve muitos outros, como predisposições genéticas para covardia, desonestidade, falta de inteligência. Ou seja, todas as características que acabam contribuindo para uma sociedade degradada (ROTH, 2014, p 126-127).

Entretanto, a forma como nesse texto se achava que iriam melhorar a sociedade trouxe consequências desastrosas, evidenciando que, como as sociedades pensam no pior para a futuro, sempre buscam um jeito de evitá-lo. Em larga medida é isso que as distopias contêm: uma desesperança no futuro que faz com que essas narrativas apresentem, quase em sua totalidade, soluções controladoras para os problemas identificados.

Ao contrário das distopias, existem as utopias, mais antigas e cujas previsões de um mundo se caracterizam por projeções de sociedades ideais em que quase tudo funciona bem e em harmonia. Porém, a linha entre as utopias e as distopias podem ser muito tênue, conforme registra Gregory Claeys (2013). E o que se apresenta como utopia para um grupo social pode ser visto como distopia para outro.

As utopias e distopias sofreram diversas transformações ao longo do tempo. As passadas temiam os monstros e os deuses, as mais recentes temem, entre outros aspectos, a tecnologia e os regimes totalitários. A descrença no uso humanizado e comprometido com o bem comum da ciência, tecnologia, recursos naturais etc. faz com que os seres humanos se sintam incapazes de modificar o presente e construir um futuro melhor. Além disso, há a sensação de que a ciência, utilizada como instrumento de controle pelos regimes totalitários, pré-determina o que vai acontecer, tornando o futuro algo já pronto e acabado. Assim, nesse mundo de hoje, em grande medida o presente é substituído pelo imediato, se tornando um presente eterno, e isso faz com que as pessoas e sintam impotentes para transformar o presente e construir possibilidades novas de futuro.

CONCLUSÃO

Para concluir, é importante observar o potencial que as distopias oferecem para a compreensão das noções de temporalidades que circulam na atualidade e são base de reflexão para a teoria da história, na medida que é possível observar como elas são temporalizadas, quando utilizamos os conceitos de prognóstico, presentismo, e a evolução da ciência para essa análise, e também como a literatura se mostra um instrumento poderoso para construir essa observação, sendo utilizada para a construção historiográfica. Também é relevante notar que mesmo as distopias literárias juvenis podem conter avisos de que se não melhorarmos nossas atitudes no presente, nosso futuro pode se assemelhar às distopias, como a que foi aqui analisada. Não podemos mudar o passado, mas o futuro depende das atitudes que tomarmos aqui no presente. É pertinente observar, além disso, que na saga Divergente, é possível notar como as noções de tempo são construídas na narrativa, e como os personagens têm relação com o tempo, e como a percepção sobre ele pode mudar a narrativa. Podemos observar o que leva as pessoas a possuírem esse medo em relação ao futuro, observar o quanto as experiências ruins do passado são capazes de orientar a humanidade, de forma que se for necessário, instituir um regime totalitário para garantir a paz, assim será feito.

 

REFERÊNCIAS

CERRI, Luis Fernando. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro: FGV, 2011.

BERNARDINI, F. Aurora. Literatura e Estudos Culturais. In: Revista de Literatura – 100 Anos da Revolução Russa. São Paulo. v., p. 101-115, 2017.

CLAEYS, Gregory. Utopia. A história de uma ideia. São Paulo: Edições Sesc SP, 2013.

COSTA LIMA, Luiz. Documento e Ficção. In: Trilogia do Controle. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p 413-422.

HARTOG, François. Introdução – Ordens do tempo e regimes de historicidade. In: Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p 17-41. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 2014.

KOSELLECK, R. O Futuro Desconhecido e a Arte do Prognóstico In:_______. Estratos do Tempo: estudos sobre a história. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2014, p. 189-205.

LAJOLO, Marisa. O que é literatura. São Paulo: Editora Brasilienses, 1984.

NOVAES, Adauto. Mundos Possíveis. In: O futuro não é mais o que era. São Paulo: SESC, 2013.

ROTH, Veronica. Convergente. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

ROTH, Verônica. Divergente. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

TALONE, da Gamma Vittorio. Distopias presentes, passadas e futuras: os monstros da sociedade. In: Sociologias, vol. 20, núm. 49, setembro-dezembro, 2018, pp. 368-380, Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFRGS. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/soc/v20n49/1807-0337-soc-20-49-368.pdf. Acesso: 10 jun. 2011.

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