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A TEORIA KING KONG E O FEMINISMO PUNK DE VIRGINIE DESPENTES


 

RESENHA

 

LEPH - Revista Me Conta Essa História Jun. 2020 Ano I Nº 006 ISSN - 2675-3340 UFJ.

 

Por Ana Lorym Soares


Professora do Curso de História da UFJ e participante do clube de leitura escritAS.

 

Há algumas semanas fui convidada a escrever uma resenha para um projeto literário muito pertinente que enfoca a leitura coletiva de obras escritas por mulheres, preferencialmente africanas e latino-americanas. Imediatamente busquei na memória os livros que tinha lido recentemente, durante o isolamento social devido à pandemia de Covid-19, e poucos eram de autoria feminina. Desses, nenhum de autoras latino-americanas ou africanas. Na ocasião do convite mencionei Teoria King Kong de Virginie Despentes, que conheci recentemente ao ser referido em uma das muitas lives da quarentena a que assisti. Entretanto, logo descartei: a autora é francesa. Mais ocidental impossível!


Procurei nas minhas estantes e a busca foi em vão. Nelas praticamente não havia livros de literatura escrito por mulheres fora do eixo Europa-Estados Unidos. Na verdade, excetuando-se a produção sobre o Brasil, a enorme maioria dos meus livros, físicos ou eletrônicos, foram escritos, prefaciados, traduzidos e editados por homens. Fiquei impactada com a constatação. Não havia ainda feito essa contabilidade. Muito embora eu já tivesse pensado, em texto anteriormente publicado, sobre o quanto ainda estamos envoltas ao modelo epistemológico hegemônico no Ocidente que determina às mulheres o lugar de subalternidade na criação artística e na produção do saber (SOARES, 2019).


Tentei adquirir por meio do meu dispositivo eletrônico de leitura alguns títulos escritos por mulheres que fossem mais próximos ao escopo do projeto. No entanto, não sabia muito por onde começar. Decidi então iniciar por autoras que, embora já bastante conhecidas e não exatamente literárias, ainda não tinha lido praticamente nada escrito por elas. De Chimamanda Adichie, a mais “literária” entre as autoras escolhidas, li Sejamos todos feministas; de Djamila Ribeiro li Pequeno manual antirracista; de Angela Davis li Mulheres, raça e classe. Leituras necessárias e muito satisfatórias. Contudo, não me senti estimulada a resenhar nenhuma delas. Até achei Sejamos todos feministas apropriado: escritora nigeriana, tema importante, leitura fluida... Mas, naquele momento, eu não queria escrever algo que considerasse apenas apropriado. Senti certa culpa, mas não rolou!


Redimensionei o aspecto geográfico. Pensei nele como uma baliza importante, mas não ao ponto de ser excludente. Dessa maneira eu poderia voltar a considerar o livro de Virginie Despentes. Pensei, repensei e me decidi por ele mesmo. Se ele afetar outras leitoras e leitores um quarto do que me afetou, acho que justifica a escolha.


Virginie Despentes é francesa sim, mas pertence, como Sophie Calle e Michel Houellebecq, entre outros, a um grupo de autores franceses contemporâneos que produzem uma literatura que está em constante tensão e enfrentamento dos poderes estabelecidos. São profundamente críticos à sociedade francesa e ocidental. Ainda que controversos e centrados na perspectiva da branquitude. Mesmo assim, acredito que conhecer um pouco de Despentes a partir de seu ensaio autobiográfico feminista e barulhento pode ser bem interessante. Além disso, Despentes tem uma história de vida que torna os assuntos tratados no texto muito mais convincentes e instigantes porque ela se expressa sempre a partir de suas experiências como mulher que não se encaixa em estereótipos femininos, mulher que foi estuprada, mulher que se prostituiu, mulher que atuou na indústria pornográfica, mulher que escreve, mulher que é feminista e que não se contenta com o lugar normalmente reservado a pessoas como ela.


Teoria King Kong, publicado originalmente em 2006, é o sexto livro publicado por Despentes, que além de escritora, é cineasta, conhecida sobretudo, no universo cult e universitário mais alternativo. O livro é um potente manifesto feminista escrito em primeira pessoa. A história de vida de Virginie Despentes – contada de forma ágil, seca e, muitas vezes, irônica e agressiva – é permeada por reflexões bem-vindas sobre temas tabus como estupro, prostituição e pornografia. Mas também sobre as representações e relações entre os gêneros performados por homens e mulheres numa sociedade capitalista de classe.


No cruzamento de testemunhos existenciais e reflexões político-conceituais duas noções centrais surgem no texto e o atravessam: a metáfora de King Kong e a atitude punk rock.


No primeiro caso, trata-se de uma leitura interessante que enxerga em King Kong, personagem principal do filme de Peter Jacson, de 2005, um símbolo do híbrido diante da obrigatoriedade do binário. Confesso que tive de rever o filme e tentar enxergar o que Virginie Despentes indica. De fato, vi o filme com outros olhos e até gostei dele mais do que da primeira vez que o assisti, embora não o considere arrebatador em nenhum aspecto. Percebi um filme ao mesmo tempo sensível e sagaz, por se mostrar capaz de suscitar reflexões sobre muitas coisas, inclusive sobre gênero. Deste ponto de vista ele é mesmo carregado de potência contestadora daquilo que muitas vezes encaramos como óbvio ou natural. Para usar aqui o jargão levi-straussiano, o filme acaba sendo “algo bom para pensar”.


A ideia de punk rock designa a atitude rebelde diante das normas política e socialmente determinadas. A autora a considera “um exercício de explosão de códigos estabelecidos, especialmente no que se refere aos gêneros” (DESPENTES, 2016, p. 96). No texto, o punk se impõe como vetor que perpassa todos os sete capítulos do livro. No primeiro deles, Despentes expõe seu lugar de enunciação e sentido de sua escrita: é, sobretudo do ponto de vista das mulheres excluídas, das que não se encaixam nos estereótipos femininos de boa moça que ela se pronuncia.

Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas excluídas do grande mercado da boa moça. E começo assim para que tudo fique bem claro: não me desculpo de nada, não vim aqui para reclamar. Não trocaria de lugar com ninguém, porque ser Virginie Despentes me parece um assunto muito mais interessante do que qualquer outro (DEPENTES, 2016, p. 07).

É do ângulo de uma “proletária da feminilidade” que ela fala. É do lugar de quem é “mais King Kong do que Kate Moss” que ela se expressa e se posiciona para defender o direito ao escândalo e à controvérsia. Porque, como dito, ela não está interessada em agradar ninguém e muito menos a se colocar em um lugar de subalternidade obrigando-se a pedir desculpas a quem por ventura se ofender com suas palavras. É nesse sentido que a identidade punk rock da autora funciona como um recurso contestatório da normatividade e do estereótipo e se coloca em defesa do híbrido, do marginal e do feminino como liberdade de ser o que quiser ser ou o que conseguir ser.


A tríade estupro, prostituição e indústria pornô, desenvolvida respectivamente nos capítulos 3, 4 e 5, é, certamente, o ponto mais forte do texto. Quando li os capítulos que abordam esses temas fiquei ao mesmo tempo em choque e aliviada por ver que alguém teve a coragem ou o atrevimento de expor tais questões de forma tão crua, sem o pudor que geralmente acompanha esses temas. Porém, sou consciente de que as palavras registradas ali estão longe de serem consenso, seja entre leitoras e leitores de modo geral ou mais especificamente entre as correntes feministas dominantes da contemporaneidade.


No terceiro capítulo, intitulado Impossível estuprar esta mulher cheia de vícios, Despentes nos conta sobre como o estupro coletivo que sofreu na adolescência junto com uma amiga funcionou na sua vida como “ato fundador” daquilo que ela se tornou como mulher e como escritora, “sendo ao mesmo tempo aquilo que a desfigura e a constitui” (2016, p. 45). Recorda que foi a partir do contato com as ideias feministas de Camille Paglia que passou a encarar a experiência do estupro como algo além “do horror absoluto, do não dito, disso que sobretudo não deveria jamais acontecer” (DESPENTES, 2016, p. 36). Atitude que, para Despentes, a ajudou a ver o estupro como circunstância política e a viver com ele, sem negar nem sucumbir.


É pela chave da ironia que Despentes inicia o quarto capítulo, Dormindo com o inimigo, onde tematiza a prostituição por mulheres: “As prostitutas constituem o único proletariado cuja condição comove a burguesia” (2016, p. 47). Ela argumenta, aproximando-se de Gail Pheterson, que isso ocorre porque não é tolerável a mulher pedir dinheiro por aquilo que deveria ser gratuito. Para Despentes, a puta é a “mulher do asfalto”, aquela que se apropria da cidade, circula livremente, é senhora de seu corpo e de seu desejo e ganha dinheiro com isso. Em uma sociedade normativa como a francesa, o trabalho feminino, doméstico ou sexual, deveria ser encarado como inerente à condição de mulher, portanto, gratuito e silencioso. As prostitutas explodem essa lógica e é isso que tanto incomoda as pessoas que se colocam como defensoras da honra e da dignidade das trabalhadoras do sexo.


Para Despentes, a prostituição, com a opção de escolhas de clientes e roteiros possíveis, pode ser uma maneira das mulheres se aventurarem nos domínios do sexo, sem sentimentos; de experimentarem sem ter que fingir que o fazem por puro prazer ou por esperarem benefícios sociais colaterais. E no caso dela, a prostituição se constituiu em etapa crucial na reconstrução depois do estupro.


No quinto capítulo, intitulado Pornofeiticeiras, Virginie Despentes aborda a pornografia de um ponto de vista não menos controverso do que o exposto em relação ao estupro e à prostituição. Ela considera que o cinema pornô deve ser encarado como um gênero cinematográfico, subdividido por subgêneros distintos (porno-chic, alt-porn, sadomasoquismo etc.), como qualquer outro gênero, portanto, visto como arte. O esforço em proibir ou relegar o cinema pornô a um “lupemproletariado do espetáculo” faz parte da estratégia da censura que determinou historicamente esse tipo de produção, inventando-o e definindo-o como algo a ser mantido sob controle, para consumo de poucos. Enquanto cineasta que teve seu longa metragem pornô punk, Baise-moi, censurado e transformado em motivo de grande debate na França, Despentes se recente da impossibilidade, até hoje, de realizar filmes pornô ambiciosos, com a dignidade econômica e artística com que se filma a guerra, o amor romântico ou gângsteres, por exemplo (DESPENTES, 2016, p. 83).


No sétimo e último capítulo, Boa sorte, meninas, Despentes dialoga com Virginia Woolf, Angela Davis e Monique Wittig para falar sobre a escrita feminina e o papel do feminismo para as gerações futuras. Ela encara o feminismo como uma visão de mundo, uma escolha. Chama atenção para o fato de não se tratar de opor pequenas vantagens das mulheres às conquistas dos homens, mas de dinamitar tudo isso. Para ela, o feminismo é uma revolução em marcha, “uma aventura coletiva para mulheres, para homens e para os outros” (DESPENTES, 2016, p. 121).


Por fim, fica registrado o convite para se aventurarem na literatura e na história de vida de Virginie Despentes, autora fantástica que é capaz de comover e desestabilizar as leitoras e leitores em um mesmo parágrafo de sua intensa biografia.

 

COMO CITAR ESSA RESENHA


SOARES, Ana Lorym. RESENHA: A Teoria King Kong E O Feminismo Punk De Virginie Despentes. In:. Revista Me Conta Essa História, a.I, n.06, jun. 2020. ISSN 2675-3340. Disponível em: < https://www.mecontaessahistoria.com.br/post/a-teoria-king-kong-e-o-feminismo-punk-de-virginie-despentes> Acesso em:

 

REFERÊNCIAS


DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. Trad. Márcia Bechara. São Paulo: n-1 edições, 2016.


SOARES, Ana Lorym. “Estética, política e epistemologia a partir do romance distópico O conto da aia, de Margaret Atwood”. In: Martha S. Santos, Marcos Antonio de Menezes e Robson Pereira da Silva (Orgs.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2019, p. 121-141.

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